Pertence à memória o tempo em que o Brasil, cuja indústria capengava, dependia do que vinha do exterior para quase tudo. Produtos argentinos pareciam melhores que os nossos e custavam caro. A situação se inverteu, o Made in Brazil invadiu uma Argentina cuja indústria andou de ré e luta para sair do atoleiro econômico em que se colocou. Naqueles tempos antigos o Mercosul – o mercado comum idealizado no Cone Sul e de cuja organização Brasil e Argentina são os principais integrantes – era apenas uma idéia. Hoje são sócios. E convém que sócios, além de sócios, sejam parceiros.
Por isso, não faz muito sentido essa nova briga entre vizinhos, sócios e parceiros, denominada “guerra das geladeiras”. Já antes tivemos outras escaramuças, ligadas à área dos têxteis, ou aos produtos agrícolas – uma vergonha nas fronteiras. Agora os eletrodomésticos brasileiros enfrentam restrições do governo argentino, com as quais não concorda o Brasil. Do lado de cá houve até protestos contra as medidas restritivas argentinas, felizmente em forma de um tango dançado em via pública. Do lado de lá, o ministro da Economia, Roberto Lavagna, saiu-se com a afirmação que o Brasil faz tempestade em copo d?água.
Mesmo que usando a imprensa, o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, deu um conselho importante aos que, em vez de resolver problemas, costumam colocar lenha na fogueira: dois sócios – disse – não deveriam discutir por meio da imprensa, mas empenhar-se em negociar uma solução. O conselho mais vale ainda tendo-se em vista um antigo e histórico contencioso entre os dois países, nunca bem estudado, nem bem explicado de parte a parte.
Vale aqui o exemplo europeu. No bloco do Velho Mundo, nações que se enfrentaram diversas vezes em guerras encarniçadas conseguiram superar antigas barreiras olhando para um objetivo comum. Aliás, diversos objetivos. Levou muito tempo, mas diferentes bandeiras hoje são hasteadas no mesmo ambiente, para onde convergem idéias e ideais, problemas e soluções. Não se pode dizer que existe um Mercado do Sul enquanto problemas tão simples como a comercialização de eletrodomésticos não se fizer sob uma norma, e essa norma for respeitada.
Se o Made in Brazil incomoda a Argentina, a ponto de levantar barreiras no vizinho país, que dizer de outras questões bem mais complicadas, como a adoção de medidas comuns em áreas bem mais sensíveis como a monetária? E se os problemas argentinos não são no Brasil compreendidos, a ponto de deixar de prontidão também a área sindical, que teme o desemprego em decorrência das exportações menores, como visualizar um futuro em que os problemas sociais de ambas as nações (para não falar dos demais parceiros envolvidos no mesmo bloco) sejam tratados com a compreensão mútua que o caso, naturalmente, haverá de requerer?
Os esforços, pelo menos aparentes, de ambos os lados no sentido de superar desentendimentos pontuais precisam avançar mais fundo. Não haverá Mercosul enquanto cada vizinho ficar fazendo de conta que está envolvido na causa comum, mas, na verdade, estiver preocupado apenas com seu próprio umbigo. Vale para a Argentina, para o Uruguai, para o Brasil e para todos os demais que eventualmente aderirem à antiga idéia que, para muitos, deveria ser bem mais abrangente em termos de América do Sul.
O ideal seria atingido quando, para além das fronteiras geográficas e tributárias, estiver cravado no selo de procedência o Made in Mercosul. Para coisas de lá e para coisas de cá. Isso requer paciência e despojamento das pretensões de liderança de parte a parte, bem como a compreensão de que o desemprego argentino não será resolvido com o desemprego brasileiro, ou vice-versa. “O Brasil – disse em Genebra o chanceler Celso Amorim – terá com os argentinos não apenas paciência política, mas também paciência econômica.” Para o bem de vizinhos, a recíproca deve, necessariamente, ser verdadeira.