O Brasil que sai das urnas exibe um poder político mais desconcentrado, um sistema de forças mais esgarçado e uma tendência de continuação da precária governabilidade, que, nos últimos anos, se fez presente no monumental esforço do Governo para fazer passar no Congresso Nacional projetos de seu interesse. Se a era de Fernando Henrique foi marcada por um rolo compressor, garantido por uma base mínima de 279 parlamentares na Câmara Federal, que integravam os partidos governistas (PSDB, PFL e PMDB), o ciclo que se abre registrará, logo em seu início, uma perda naquele conjunto de 50 representantes (17,92%) e um ganho de um pouco mais de 36% por parte das atuais hostes oposicionistas. O número de 15 partidos representados na Câmara Federal sobe para 19, o que significa não apenas um golpe nas grandes estruturas, mas a sinalização de que a tão proclamada reforma partidária enfrentará resistências maiores que as atuais.

Os resultados do pleito apontam para a queda dos grandes partidos, fato que vem se acentuando desde 1990 e 1994, quando alguns, como o PMDB, chegavam a ter uma participação de mais de 20% na composição parlamentar. Hoje, essa presença fica abaixo dos 14%. Na verdade, o que tem ocorrido é uma pulverização partidária, cujas conseqüências apontam para a precária governabilidade. Explica-se: a distribuição mais horizontal do poder amplia o espectro partidário, exigindo negociações tensas e complexas entre Executivo e Legislativo, situação que poderia ser considerada normal fosse o novo Governo um ente previsível e não envolto em interrogações. Não é o caso. Lula se assenta na cadeira presidencial sob o manto da imponderabilidade.

Mas a ênfase que se quer imprimir é sobre os fios que conduziram à vitória de Lula. Ela se deve, sobretudo, ao fenômeno da fulanização política, processo que se iniciou com a quebra da fidelidade partidária, que o general Golbery do Couto e Silva importara do México, pinçando-a da lei de governabilidade, que, até a vitória de Vicente Fox, do Partido de Ação Nacional(PAN), garantiu 71 anos de Governo ininterrupto ao Partido Revolucionário Institucional(PRI). Considerada coisa da ditadura, a fidelidade foi abolida, apesar da reação de Tancredo Neves, logo depois de eleito, em 1985, no sentido de que a lei eleitoral deveria ganhar mudanças, mas não a ponto de se ter “a porta arrombada”. Foi o que ocorreu. De lá para cá, criaram-se dezenas de siglas e a política passou a ser um espaço de beltranos e sicranos.

Pegando carona no atual sistema eleitoral proporcional, que data de 1950, o fenômeno da fulanização tomou corpo, contribuindo, por meio das listas abertas, para o voto “salada mista”, pelo qual o eleitor tem liberdade de escolher candidatos, em um visível enfraquecimento das estruturas partidárias. Isso porque os partidos, com raras exceções, além de não possuírem controle sobre os perfis e as chances de seus candidatos, passam a presenciar, estáticos, uma feroz disputa entre os próprios. Para coroar o ritual de personalização política, muitos eleitos acabam trocando a sigla, contribuindo, assim, para o estiolamento partidário. Quem controla com mais rigidez o rol de candidatos, como o PT, compensa a dispersão das listas abertas e se fortalece.

Maurice Duverger, chamando a atenção para tal problema, chegou a afirmar que “o Brasil só será uma grande potência no dia em que for uma grande democracia. E só será uma grande democracia no dia em que tiver partidos e um sistema partidário forte e estruturado”. Ora, a receita dada por esta eleição demonstra que estamos muito longe do ideal do pensador francês. O nosso sistema é instável. Para se consolidar, carece que o país adote a modalidade eleitor-partido, para a qual serão necessários, no sistema proporcional, a lista fechada para escolha de representantes, como na Espanha, Suécia, Holanda e Áustria, ou mesmo um sistema misto, que permita ao eleitor visualizar as duas alternativas, permanecendo o sistema majoritário em dois turnos.

O que não mais se admite é a manipulação dos partidos, que se vêem forçados a formar coalizões não em função de um ideário, porém com o cimento do loteamento de cargos na administração pública. A pulverização partidária dá origem a outro fenômeno ? a cissiparidade ? ou seja, a divisão de um partido em dois, como foi o caso do PSDB, que saiu de uma costela do PMDB, e o PDT de uma banda do velho PTB getulista. A partir daí, a proliferação de novas legendas passa a povoar a cultura política.

Constatada a situação e explicada sua natureza, resta aduzir que Lula terá mais dificuldades para governar que Fernando Henrique. Para conferir uma cara petista ao Governo, terá de usar as tintas do fisiologismo partidário. Quanto mais impactante o projeto e revolucionárias as ações, maior será a fatura.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.E-mail: gautorq@gtmarketing.com.br

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