Quem tiver um mínimo de paciência e ler, apenas ler, os artigos 1.º e incisos; 2.º; 14 e incisos; 18; 34; 93, inciso XI; 96; 99; e 125, todos da Constituição Federal, verificará que o governo Lula até o surgimento do escândalo do mensalão vinha, na contramão dos preceitos constitucionais citados, desenvolvendo uma política de controle dos Poderes do Estado: o controle do Legislativo pelos escusos meios noticiados pela mídia e o do Judiciário por meio do Conselho Nacional de Justiça.

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Com efeito, em 23 de abril de 2003, na Folha de S.Paulo (Caderno A-3), o presidente Lula criticava a ?caixa-preta do Judiciário? e defendia o controle externo do Poder Judiciário; no mesmo jornal, 18.5.2003 (A-4), o ministro da Justiça, Thomaz Bastos, dizia que o controle externo do Judiciário (CNJ) iria apenas impor aos juízes o cumprimento dos deveres funcionais e participar do planejamento orçamentário e financeiro (dos Tribunais). Em 16.11.2003, noticiava a Folha de S.Paulo que o presidente Lula havia elegido a reforma do Judiciário como nova prioridade política, considerando como ponto essencial a criação do CNJ (A-21); em 17.4.2005 o ministro da Justiça elogiou o voto condutor do ministro do Supremo Tribunal Federal, Antonio Cezar Peluso, que deu pela constitucionalidade do CNJ e pela necessidade da sua existência, sustentando que o fundamento de criação do CNJ ?diz respeito à necessidade de um governo que oriente mudanças no Poder Judiciário a partir de uma perspectiva nacional?(A-3).

O objetivo totalitário do governo Lula estava implícito no artigo de autoria do professor Roberto Romano ?Sacrifício do Intelecto?(Folha de S. Paulo, 24.9.03- A-3). Dois anos depois, este mesmo professor volta a escrever sobre a intenção totalizante do governo Lula ao afirmar que ?montaram um partido para arrebatar o poder?(A-3).

Também venho escrevendo  sobre a função totalizante do Conselho Nacional de Justiça, sustentando na minha última publicação que: ?parece-me, pois, exato concluir que o senhor ministro (do STF Antonio Cezar Peluso) expressa um ideário político uniforme para a Justiça brasileira de maneira que esta venha a funcionar de norte a sul do país célere e eficiente, ou seja, ordenadamente progressista posto que recomenda, por exemplo, que os juízes ?têm de se desarmar, de fazer sua catarse, para poder progredir? (Revista Conjur, de 27.8.05, sob o título ?Meu Medo?) .

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O ideário totalizante e unificador do CNJ está aí, ainda quase imperceptível. As Resoluções do CNJ já começaram. Há uma recente sobre a questão da promoção de juízes e a próxima, pasme-se, virá para regular as eleições para o órgão especial dos tribunais.

Resolução, contudo, como é sabido pela melhor doutrina administrativista, é ato administrativo normativo interno expedido por órgão colegiado visando esclarecer, interpretar, regulamentar, executar norma jurídica orgânica como, por exemplo, regimento interno. Por conseguinte, a Resolução não produz e não pode produzir efeitos externos ao órgão público que a expediu, sob pena de usurpação do poder de legislar. Além do que a Resolução implica na existência de uma relação de subordinação hierárquica administrativa entre seu órgão expedidor colegiado e os agentes públicos desse mesmo órgão.

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Pergunta-se, pois: é constitucional, é legítimo, é lícito que um órgão externo ao Poder Judiciário, que se põe acima do próprio Supremo Tribunal Federal, regule o processo eleitoral dos tribunais do país por meio de uma prosaica Resolução administrativa, imiscuindo-se nos assuntos de política interna destes?

Em São Paulo o Tribunal Pleno é formado por 360 desembargadores. Como se justifica que apenas quinze pessoas, respeitáveis diga-se, que compõem o CNJ possam saber mais dos interesses políticos e administrativos internos do Tribunal de Justiça de São Paulo do que os 360 desembargadores? Por acaso isso não é o mesmo que colocar sob a tutela unificadora a liberdade de escolha, a liberdade constitucional dos 360 desembargadores de dizerem o que é melhor para o Tribunal de Justiça de São Paulo?

É evidente que essa possível Resolução seja ?reza encomendada?, e parece que foi encomendada pela própria AMB que, ao invés de pressionar os presidentes dos Tribunais do país para convocarem os respectivos Tribunais Plenos para elaborarem os seus regimentos internos, requer esse despautério jurídico-constitucional de controle do processo eleitoral interno dos tribunais e mais: contribuindo para que as minorias oligárquicas conservadoras continuem no comando.

Pergunto: é essa a ?democratização do Judiciário? que defendeu o senhor ministro da Justiça em artigo que escreveu sob este mesmo título na Folha de S.Paulo louvando o voto condutor do eminente ministro do Supremo Tribunal Federal, Antonio Cezar Peluso, que deu pela constitucionalidade do CNJ?

Gostaria que algum constitucionalista que não seja evidentemente jacobino, ou adepto da filosofia positivista, muito menos incoerente com as suas idéias doutrinárias publicadas, me explicasse isso. Como fica o princípio federativo? As eleições no Tribunal de Justiça do Acre devem ser exatamente iguais às eleições do Tribunal de Justiça de São Paulo que conta com um colégio eleitoral de 360 desembargadores? Faz algum sentido a expedição de Resolução pelo CNJ sobre esse tema, a não ser que seja para satisfazer interesses das oligarquias administrativas locais? Por outro lado, se o CNJ está autorizado a expedir Resolução com esse conteúdo, por que não podem os Tribunais de Justiça, por força dos dispositivos constitucionais acima citados, expedir o seu próprio regimento interno de forma a compor os seus peculiares interesses internos administrativos?

Peço àqueles que tenham um mínimo de bom senso jurídico-constitucional, ou seja, bom senso político no seu mais elevado sentido de autonomia, independência e liberdade, que reflitam sobre essa homogeneização, sobre esse processo totalizante do Judiciário brasileiro em curso no país.

A AMB ? Associação dos Magistrados Brasileiros, segundo consta, teria requerido ao CNJ a expedição dessa ?resolução eleitoral?. Em sendo correta essa informação, a AMB estará legitimando os atos administrativos normativos do CNJ, além de significar que, na realidade dos fatos, é a AMB, entidade privada, (ou na pior das hipóteses, o presidente da AMB) quem estará governando os Tribunais do país por meio do CNJ. Vejam só: por meio desse golpe branco o governo Lula pôs nas mãos de poucos, de muito poucos, o controle total dos Tribunais do país.

E o que é pior! Muito pior! Essa ?Resolução das eleições?, se vier, virá para eliminar por completo a possibilidade do debate político democrático dentro dos Tribunais, porque tanto pode a AMB requerer, como igualmente outras associações, ou ainda um pequeno grupo, uma pessoa até, requerer ao CNJ uma Resolução que discipline algo com que não esteja de acordo dentro dos tribunais, ou que lhe favoreça. Constatem que primoroso golpe no constitucionalismo democrático: retira-se dos Tribunais a sua autonomia, o seu autogoverno, afasta-se o Poder Legislativo e se transfere para apenas quinze homens o comando político-administrativo total dos tribunais.

O governo Lula conseguiu o que nem a ditadura militar havia ousado: o controle político sobre os Tribunais do país, agora imposto por uma liderança de advogados jacobinos, sob os aplausos de um tanto de juízes, em especial, da Associação Juízes para a Democracia, mas que por certo, todos eles, não demorarão muito para perceber a temeridade dessa política totalitária ao constatarem que o poder é fluídico. Aí talvez seja tarde demais.

Mas quem se importará com isso? Quem se importa com as oligarquias internas conservadoras dos Tribunais? Quem se importa? O povo? Foi exatamente assim o que ocorreu na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler, na URSS de Stalin, na Espanha de Franco, em Portugal de Salazar, no Brasil de Getúlio e está ocorrendo agora no Brasil de Lula. São muito poucos os que se importam. O governo Lula perdeu recentemente o controle sobre o Poder Legislativo graças às divergências negociais internas, mas nos legou e deixou o controle sobre o Poder Judiciário. Eu de minha parte estou tentando resistir a esse processo totalizante em curso, embora saiba que o ovo da serpente já esteja amadurecendo.

Augusto Francisco Mota Ferraz de Arruda é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Fonte: Revista Consultor

Jurídico, 12/09/2005