Livre iniciativa e função social da empresa

A Constituição estabelece, como um dos fundamentos da República, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e, como principais objetivos do país, a construção de uma sociedade solidária, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais.

Ao tratar da ordem econômica, diz que esta se funda na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com o fim de assegurar a todos uma existência digna e conforme os ditames da justiça social, observando também o princípio da função social da propriedade.

Conclui-se, portanto, que a Constituição da República garante o direito de propriedade e o livre exercício de qualquer atividade econômica, porém de forma a atender o interesse social, a valorizar o trabalho e a assegurar a todos uma existência digna.

Conceituar empresa sempre foi uma tarefa muito difícil, em razão dos múltiplos enfoques (econômico, sociológico, histórico, político, jurídico etc.). Nos dias atuais, porém, fixar a noção de empresa tornou-se tarefa ainda mais complexa diante das inúmeras transformações pelas quais ela vem passando sob todos os aspectos.

Nos últimos tempos, de forma incontrolável e talvez até irresistível, a empresa sofreu inúmeras e profundas transformações que mudaram radicalmente sua aparência e seu modo de ação, fragmentando o modelo clássico.

Da pequena empresa familiar, de âmbito local, chegou-se à grande sociedade anônima globalizada de atuação transnacional ou internacional e a modelos novos como a empresa-rede, a empresa-constelação e a empresa virtual(1).

Amauri Mascaro Nascimento lembra que a empresa é a maior fonte de trabalho e afirma que “para o Direito do Trabalho, a empresa é uma organização social em que há pessoas com interesses que devem ser adequadamente compostos para que o processo produtivo desenvolva-se de modo a preservar a dignidade do ser humano. Como tal, é uma instituição com fins econômicos, mas, também, uma organização da qual participam assalariados que querem ter, nela, representação e participação”(2).

Já há algum tempo se desenvolveu a idéia de que a propriedade privada não constitui um direito sagrado e inviolável do qual o titular possa desfrutar e dispor livremente, mas que deve se submeter ao interesse social, gerando limitações e obrigações ao proprietário.

Essa idéia da função social da propriedade se estendeu à empresa, formando-se a concepção de que esta empresa não pode mais ser vista apenas como a organização dos fatores de produção, com objetivo de dar lucro ao empreendedor ou aos acionistas, sendo-lhe atribuída uma função social, consistente em promover o emprego, gerar e fazer circular riquezas, desenvolver a atividade profissional, preservar o meio ambiente, ensejar a redistribuição da renda, promover o desenvolvimento social e econômico da região onde opera, efetuar contribuições financeiras com destinação social etc.

Em decorrência, depois de um período de desumanização da empresa, observou-se o surgimento de uma certa ética empresarial (business ethics), vitalizada pela formulação de “códigos de conduta”.

Para Jesús Mercader Uguina, a cada dia as empresas ampliam seu círculo de responsabilidades e “a prioridade nas responsabilidades empresariais segue três círculos concêntricos: as inerentes à atividade específica da empresa (primárias), as de melhoria na incidência social dessa atividade (secundárias) e a contribuição para a melhoria do contexto social da empresa (terciárias)”, sendo que nestas últimas se situam as contribuições da empresa para o bem comum e o fortalecimento da imagem empresarial.

Como exemplos desse comportamento, aponta a contratação de deficientes, a luta contra a discriminação, a integração dos trabalhadores imigrantes, o favorecimento de universidades e centros de investigação etc., ao que veio se juntar o denominado marketing de valores ou ética estratégica, pelo qual a empresa procura demonstrar bons sentimentos cooperando em campanhas internacionais para fomentar a solidariedade e as boas ações(3).

Em paralelo, medrou a idéia de que os direitos e poderes da empresa ou do empregador vêm sendo limitados por normas (de variadas fontes) que põem em supremacia os interesses sociais, dentre os quais os dos empregados, restringindo a autonomia de vontade patronal.

Com relação aos trabalhadores, em especial, invocam-se os princípios da dignidade da pessoa humana e do direito ao trabalho, inclusive como meio de alcançar a plena cidadania.

De fato, a idéia de cidadania implica o reconhecimento do direito do indivíduo a exercer um trabalho que lhe proporcione os meios necessários a uma subsistência digna e se complete como pessoa humana.

A tais circunstâncias somou-se o fato de que os ventos de democracia que varreram muitas nações nas últimas décadas atingiram também as empresas, provocando uma atenuação da autoridade patronal e o incremento da participação dos trabalhadores e da pressão social na vida da empresa, a qual “deixou de ser uma zona franca em que o empresário exercia uma autoridade onivalente, arbitrária e unilateral, com a conseguinte separação entre o status geral de cidadania e o estado de empregado subordinado. Desta maneira, os direitos fundamentais do trabalhador, ut cives, foram abrindo passagem e entrando nas fábricas”(4).

Em razão desse papel social e das restrições ao direito de propriedade e de livre iniciativa, com limitações à autonomia de vontade e crescente participação dos trabalhadores, chegou-se ao ponto, por exemplo, de o empreendedor não mais poder cerrar, alterar ou transferir o estabelecimento de forma puramente arbitrária ou unilateral, quando disso resultarem reflexos negativos ou colisão com o interesse social, como já se observa no âmbito da União Européia, cujo Conselho editou uma Diretiva específica para disciplinar os procedimentos de informação e consulta aos trabalhadores.

Tendência semelhante já se observa no Brasil, como nos recentes episódios de despedidas em massa de trabalhadores em algumas empresas sob o fundamento da crise mundial, registrando-se incipientes manifestações doutrinárias e mesmo jurisprudenciais, no sentido de que isso só seria possível após a tentativa de encontrar outra solução ou outras alternativas por meio da negociação coletiva.

Notas:

(1) SIMM, Zeno. A empresa como sujeito do negócio jurídico trabalhista. Revista Magister de Direito Trabalhista e Previdenciário, Porto Alegre, Editora Magister, n. 4, p. 20-71, jan./fev. 2005.
(2) NASCIMENTO, A. M. Teoria Geral do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1998, p. 246.
(3) MERCADER UGUINA, J. R. Derecho del trabajo, nuevas tecnologías y sociedad de la información. p. 207 (tradução livre).
(4) MOLINA NAVARRETE, Cristóbal; OLARTE ENCABO, Sofía. Límites constitucionales a la libertad de empresa y derechos fundamentales “inespecíficos” del trabajador. p. 266-7.
Coluna sob responsabilidade dos membros do grupo de pesquisa do Mestrado em Direito do Unicuritiba: Liberdade de Iniciativa, Dignidade da Pessoa Humana e Proteção ao Meio Ambiente Empresarial: inclusão, sustentabilidade, função social e efetividade, liderado pelo advogado e professor doutor Carlyle Popp e subliderado pela advogada e professora M.Sc. Ana Cecília Parodi. grupodepesquisa.mestrado@ymail.com.

Zeno Simm é professor de Direito do Trabalho do Unicuritiba. Advogado. Mestre em Direito Empresarial e Cidadania.

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