Limites do bom senso

No prolongado ritual da saideira, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso teve um comportamento exemplar. Com todo o respeito ao novo presidente, até porque achamos que fará um governo sério e sairá consagrado, a nação sentirá saudades do estilo FHC, aí compreendida também a imagem doce de sua mulher – dona Ruth Cardoso. Mas um dos últimos atos do ex-presidente merece comentários à parte, quando ele teve a lucidez ao revogar outro ato seu, editado em novembro último, que permitia poderes ilimitados à Receita Federal. Assim como avançou o sinal sem prévio aviso, FHC, também sem muito rumor, voltou atrás.

Pelo ato anterior, a Receita Federal podia entrar na vida dos cidadãos e empresas a todo momento. Bastava que alguém, durante o mês, movimentasse importância igual ou superior a cinco mil reais e o banco estava obrigado a comunicar o fato ao órgão do Ministério da Fazenda. A regra também valia para empresas que ultrapassassem a conta dos dez mil reais mensais. Um absurdo e um abuso, tanto no caso das pessoas físicas, quanto das pessoas jurídicas.

A idéia básica, segundo se alegava, era, além do combate à sonegação fiscal, a vigilância sobre a lavagem de dinheiro. No caso de pessoas físicas, o argumento enveredava para a constatação de que os que ganham acima de cinco mil reais mensais constituem pequena parcela de cidadãos brasileiros (fato que, até prova em contrário, não constitui crime algum). No caso das pessoas jurídicas, o argumento era mais débil, mas igualmente sustentado em nome do combate ao crime ou coisas do gênero. Quantas empresas brasileiras movimentam, por dia, somas bem superiores aos dez mil mensais estabelecidos?

Embora fundado em lei, o decreto de FHC provocou uma chiadeira sem precedentes, que veio de todos os lados. A Ordem dos Advogados do Brasil foi uma das entidades que se esforçou por demonstrar, mais que a inconstitucionalidade da medida, o absurdo da iniciativa que representava, na prática, a quebra irrestrita do sigilo bancário. O malsinado decreto 4.489 permitia que o leão da Receita ficasse de olho, não apenas na movimentação das contas correntes, mas também na compra de ações, de moedas estrangeiras, ouro e até nos gastos com cartões de crédito. Juristas e tributaristas de renome, como Miguel Reale e Ives Gandra Martins, prepararam bem estudado parecer que acabou por convencer o presidente da República sobre a violência da exigência que, além do mais, entrava na competência do Poder Judiciário.

Agora, com a revogação da medida (o Planalto procurou nem comentá-la por motivos óbvios), contribuintes e empresas respiram mais aliviados, embora não estejam livres dos ataques do leão, que tem a seu dispor todo o arsenal proporcionado pela CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. Só que há uma diferença: a guarda do sigilo bancário pertence à Justiça e não à Receita. Esta, em caso de suspeita de práticas ilícitas por parte dos contribuintes, terá que buscar, antes de agir, uma autorização do Poder Judiciário, como existe nas melhores democracias. Isso, embora na prática seja fácil de obter, inibe pelo menos a bisbilhotice sem fundamentação ou, melhor dizendo, com fundamentação meramente política, exercida de forma discricionária. Um legado que, certamente, seria incompatível com a imagem de democrata cultivada com justificado orgulho por FHC até o último momento.

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