O benefício assistencial de prestação continuada, instituído pela Lei n.º 8.742/93 (a chamada Lei Orgânica da Assistência Social LOAS), visa garantir um mínimo de dignidade à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família (CF/88, art. 203, V).
Através dele, o maior de 65 anos e o portador de deficiência recebem quantia mensal correspondente a 1 (um) salário mínimo, desde que comprovados os requisitos trazidos pela mencionada Lei n.º 8.742/93. Isso independentemente de qualquer contribuição ao Regime Geral de Previdência.
Dentre tais requisitos, exige-se do beneficiário a prova de que possui renda mensal familiar per capta inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo (Lei 8.742/93, art. 20, § 3.º).
Assim, para constatar o direito ao benefício assistencial, soma-se a renda mensal de todas as pessoas residentes sob o mesmo teto, dividindo-a pelo número total de membros que compõem o grupo familiar. Esse valor, na atualidade, não poderá ser superior a R$ 95,00 (noventa e cinco reais).
Tal requisito vem sofrendo inúmeras críticas, principalmente por reduzir um conceito jurídico indeterminado (estado de miserabilidade) a critérios meramente matemáticos.
Prevalece, pois, o entendimento de que tal fator não é absoluto. Uma vez demonstrada efetiva hipossuficiência por outros meios de prova, pode o magistrado ignorar o limite fixado pelo art. 20, § 3.º, da Lei 8.742/93 e ordenar a concessão do benefício assistencial(1).
A situação, porém, não é tão simples quanto aparenta.
Não há como simplesmente desconsiderar o critério fixado pelo legislador, cuja constitucionalidade foi inclusive reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato(2).
Trata-se de típica situação de conflito entre valores constitucionalmente protegidos, cuja solução já foi dada in abstrato pelo Legislativo. Nesses casos, ao Judiciário só resta duas alternativas: (a) declarar a inconstitucionalidade do ato normativo em questão; ou (b) respeitar a opção legislativa em observância ao princípio formal da competência decisória do legislador(3).
Como o STF quem dá a última palavra em questões constitucionais já afastou a primeira das hipóteses, tecnicamente, somente resta a segunda.
Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal já declarou que ?o critério de ¼ do salário mínimo é objetivo e não pode ser conjugado com outros fatores indicativos da miserabilidade do indivíduo e de seu grupo familiar, cabendo ao legislador, e não ao juiz na solução do caso concreto, a criação de outros requisitos para a aferição do estado de pobreza daquele que pleiteia o benefício assistencial?(4).
Por outro lado, não há como negar que, substancialmente, tal critério passa por um processo de inconstitucionalização (der Prozess des Verfassungswidrigwerdens), colocando a respectiva norma em um estado de transição da perfeita constitucionalidade ou inconstitucionalidade parcial à total inconstitucionalidade(5).
O tema foi levantado recentemente pelo Min. Gilmar Mendes, ressaltando o tratamento diferenciado dado à questão por alguns ministros do STF, que, de um modo geral, atestam a possibilidade de se conjugar outros fatores indicativos do estado de miserabilidade do indivíduo com o critério de ¼ do salário mínimo para concessão do benefício assistencial de que trata o art. 203, V, da Constituição(6).
Tal fato está vinculado até mesmo pela reinterpretação dada pelo legislador ao conceito de miserabilidade ao fixar critérios menos severos para a concessão de benefícios assistenciais diversos.
É o que ocorreu, por exemplo, com a Lei n.º 10.836/2004, que instituiu o Bolsa Família; a Lei n.º 10.689/2003, que criou o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei n.º 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei n.º 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações sócio-educativas. Em todos esses casos, fixou-se limite superior ao ¼ do salário mínimo referido na Lei Orgânica da Assistência Social.
Isso tudo faz-nos crer que o art. 20, § 3.º, da Lei 8.742/93 pode ser considerado ?ainda constitucional? (noch verfassungsgemäss), embora já se encontre em evidente processo de inconstitucionlização.
A tendência de um novo pronunciamento pelo STF é grande, principalmente ao se considerar o espírito cada vez mais renovado de seus atuais ministros.
Notas:
(1) Tal entendimento é freqüentemente ressaltado pelo Superior Tribunal de Justiça, v.g. REsp n.º 841.060, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJU 25/6/2007; REsp n.º 536.451, Rel. Min. Laurita Vaz, DJU 23/6/2004; AgRr no REsp n.º 478.379, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJU 16/3/2006; REsp n.º 523.999, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJU 28/4/2004.
(2) STF, ADI n.º 1.232, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU 1/6/2001: ?Constitucional. Impugna dispositivo de Lei Federal que estabelece o critério para receber o benefício do inciso V do art. 203, da CF. Inexiste a restrição alegada em face ao próprio dispositivo constitucional que reporta à lei para fixar os critérios de garantia do benefício de salário mínimo à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso. Esta Lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do estado. Ação julgada improcedente?.
(3) Os chamados princípios formais são princípios de cunho procedimental (não substancial). Não incidem sobre padrões de comportamento, mas sobre padrões de validade. Sua principal característica é o fornecimento de razões para a observância de uma norma, independente de seu conteúdo. No caso das escolhas feitas pelo legislador, deve-se observância não porque são boas (ou proporcionais), mas porque são fundadas no princípio formal de sua competência atribuída pelos princípios democráticos e da separação dos poderes. Cf. Virgílio Afonso da Silva, Grundrechte und gesetzgeberische Spielräume. Baden-Baden: Nomos, 2003, p. 145-51. Sobre o tema, v. ainda Ralf Dreier, ?Konstitutionalismus und Legalismus: Zwei Arten juristichen Denkens im demokratischen Verfassungsstaat?, in: Rechtsstaat und Menschenwürde: Festschrift für Werner Maihofer zum 70. Geburtstag. Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1988, p. 102-3.
(4) STF, Rcl n.º 2.303/RS AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, DJU 1/4/2005.
(5) Sobre o processo de inconstitucionalização das normas, v. Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 21 e s. e Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei. Lisboa: Universidade Católica Editora, 1999, p. 724 e s.
(6) STF, Rcl n.º 4374, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU 6/2/2007. Cf., sobre esse novo tratamento, Rcl n.º 4.280/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 30/6/2006; Rcl n.º 4.164/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 29/5/2006; Rcl n.º 3.805/SP, Rel. Min. Carmen Lucia, DJU 18/10/2006.
Fábio Rodrigo Victorino é advogado. E-mail: frvictorino@uol.com.br