Liberdade provisória no delito de tráfico de drogas

drogasdej230907.jpgEm decisão monocrática proferida no HC 81.241-GO, em 16/4/07, o Min. Felix Fischer (Quinta Turma do STJ) denegou liminar que visava a concessão de liberdade provisória em favor de C.S.M.F., sob o argumento de que o delito de tráfico de entorpecentes não admite esse benefício legal. Os fundamentos da decisão foram os seguintes:

?Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34 a 37 da nova lei de tóxicos ?são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos? (art. 44 da Lei n.º 11.343/06). Embora tenha a lei 11.464/07 suprimido do texto legal do art. 2.º, inciso II, da Lei n.º 8.072/90 a vedação à concessão de liberdade provisória aos acusados por crimes hediondos e equiparados, remanesce a proibição tendo em vista a especialidade da nova lei de tóxicos. Além do mais, o art. 5.º, inciso XLIII, da Carta Magna, proibindo a concessão de fiança, evidencia que a liberdade provisória pretendida não pode ser concedida. Nessa linha os seguintes precedentes do Pretório Excelso (AgReg no HC 85711-6/ES, 1.ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence; HC 86814-2/SP, 2.ª Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa; HC 86703-1/ES, 1.ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence; HC 89183-7/MS, 1.ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence; HC 86118-1/DF, 1.ª Turma, Rel. Ministro Cezar Peluso; HC 79386-0/AP, 2.ª Turma, Rel. Ministro Maurício Corrêa; HC 83468-0/ES, 1.ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; HC 82695-4/RJ, 2.ª Turma, Rel. Ministro Carlos Velloso). Denego, pois, a liminar. Solicitem-se informações ao e. Tribunal a quo. Após, vista ao MPF. P. e I. Brasília (DF), 16 de abril de 2007. Ministro Felix Fischer. Relator?.

Com a devida vênia, cuida-se de decisão juridicamente equivocada e político-criminalmente incorreta (porque seguidora de um punitivismo exacerbado, típico do Direito penal do inimigo, que refoge do abrigo da razoabilidade). Não constitui, evidentemente, expressão da cultura jurídica do seu eminente prolator, nem tampouco configura uma lição de Direito penal. Só retrata mais uma manifestação do ?poder punitivo interno bruto? (PPIB), que é exercido pelas agências repressivas do Estado de Polícia.

A lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990), em sua redação original, proibia, nesses crimes e nos equiparados, a concessão de liberdade provisória (essa é a liberdade que acontece logo após a prisão em flagrante, quando injustificada a prisão cautelar do sujeito). Tráfico de drogas sempre foi considerado crime equiparado (desde 1990). A mesma proibição foi reiterada na nova lei de drogas (Lei 11.343/2006), em seu art. 44. A partir de 8/10/06 (data em que entrou em vigor esta última lei), a proibição achava-se presente tanto na lei geral (lei dos crimes hediondos) como na lei especial (lei de drogas).

Esse cenário foi completamente alterado com o advento da Lei 11.464/2007 (vigente desde 29/3/07), que suprimiu a proibição da liberdade provisória nos crimes hediondos e equiparados (prevista então no art. 2.º, inciso II, da Lei 8.072/1990). Como se vê, houve uma sucessão de leis processuais materiais. O princípio regente (da posterioridade), destarte, é o seguinte: a lei posterior revoga a lei anterior (essa revogação, como sabemos, pode ser expressa ou tácita; no caso, a Lei 11.464/2007, que é geral, derrogou parte do art. 44 da Lei 11.343/2006, que é especial). Em outras palavras: desapareceu do citado art. 44 a proibição da liberdade provisória, porque a lei nova revogou (derrogou) a antiga, seja porque com ela é incompatível, seja porque cuidou inteiramente da matéria.

Se o princípio regente é o da posterioridade (lei posterior revoga a anterior), jamais poderia a decisão ter invocado (como invocou) o da especialidade, que pressupõe a vigência concomitante de duas ou mais leis, aparentemente aplicáveis ao caso concreto. Confundiu-se, como se nota, o instituto da sucessão de leis (conflito de leis no tempo) com o conflito aparente de leis.

A diferença entre o conflito aparente de leis penais (ou de normas penais) e a sucessão de leis penais (conflito de leis penais no tempo) é a seguinte: o primeiro pressupõe (e exige) duas ou mais leis em vigor (sendo certo que por força do princípio ne bis in idem uma só norma será aplicável); no segundo (conflito de leis penais no tempo) há uma verdadeira sucessão de leis, ou seja, a posterior revoga (ou derroga) a anterior. Uma outra distinção: o conflito aparente de leis penais é regido pelos princípios da especialidade, subsidiariedade e consunção. O que reina na sucessão de leis penais é o da posterioridade.

Na teoria do direito em geral (logo, também no Direito penal), consoante lições clássicas de Ross e Bobbio (citados por COBO DEL ROSAL e VIVES ANTÓN, Derecho penal-PG, 4.ª ed., Valencia: Tirant lo blanch, 1996, p. 155), são inconfundíveis os princípios da especialidade, hierarquia e posterioridade. Quando uma lei nova (geral) cuida da mesma matéria contemplada na lei especial antiga, não paira nenhuma dúvida sobre a incidência do princípio da posterioridade, que implica a revogação (ou derrogação) da lei anterior. Em outras palavras: lei posterior geral (é o caso da Lei 11.464/2007, que cuida dos crimes hediondos e equiparados) revoga (ou derroga) a lei anterior específica (art. 44 da lei de drogas – Lei 11.343/2006).

A questão se torna complexa apenas quando a lei posterior é especial. Isso se deu com a Lei 9.455/1997 (lei da tortura), que passou a permitir progressão de regime. A jurisprudência da época (que hoje perdeu sentido em razão do advento da Lei 11.464/2007) acabou se firmando no sentido de que ?não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura? (Súmula 698 do STF, que perdeu sentido a partir do momento em que o próprio STF julgou inconstitucional a proibição de progressão de regime nos crimes hediondos – HC 82.959). Nessa súmula assentou-se a inaplicabilidade do princípio da posterioridade quando a lei posterior é especial. Ou seja: lei posterior especial (Lei 9.455/1997) não revoga a lei anterior geral (Lei 8.072/1990), isto é, só vale para os casos específicos nela definidos.

O inverso é diferente: lei posterior geral revoga lei anterior especial. É por isso que a nova lei geral dos crimes hediondos (Lei 11.464/2007) vale para o caso de tortura (regida por lei especial), inclusive no que diz respeito à exigência de 2/5 ou 3/5 (primário ou reincidente) para a progressão de regime, ressalvados os fatos precedentes (ocorridos até 28.03.07), que continuam admitindo progressão depois de 1/6 da pena (art. 112 da LEP).

Com a Lei 11.464/2007 (nova lei geral dos crimes hediondos e equiparados), frente à Lei 11.343/2006 (lei de drogas), deu-se a mesma coisa. Cuida-se de uma lei nova posterior que é geral, que revoga (ou derroga) a anterior especial. Tendo havido derrogação do art. 44 da Lei 11.343/2006 (na parte em que proibia a liberdade provisória), desde 29/3/07, ele já não pode ser utilizado. A decisão ora comentada (HC 81.241) não só aplicou texto legal já derrogado, como invocou princípio incorreto (o da especialidade, que pressupõe duas ou mais leis vigentes). No caso o princípio regente é o da posterioridade (a lei posterior afasta a lei anterior).

Os equívocos prosseguem: o segundo fundamento da decisão reside no art. 5.º, inc. XLIII, da Carta Magna, que proíbe a concessão de fiança nos crimes hediondos ou equiparados: ?se proibiu a fiança também não cabe liberdade provisória?. As incorreções da tese são múltiplas: (a) fiança não se confunde com liberdade provisória; (b) a proibição de uma não afasta a outra (os textos restritivos de direitos devem ser interpretados restritivamente); (c) agora a lei nova dos crimes hediondos (Lei 11.464/2007) já não proíbe a liberdade provisória nesses delitos; (d) a jurisprudência do STF invocada na decisão (HC 86.814-2 etc.), não só já era questionável como agora está ultrapassada depois do advento da Lei 11.464/2007. Quantos equívocos! Espera-se que sejam corrigidos prontamente, seja pelo próprio STJ, seja pela Corte Suprema do país (STF).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Ipan – Instituto Panamericano de Política Criminal, consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG – Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder mundial em cursos preparatórios telepresenciais – www.lfg.com.br)

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