O entusiasmo de professores e educadores, jornalistas e leitores aficionados na defesa da causa da leitura acabou produzindo muitos textos com contribuição verdadeira, com muita redundância e com alguns enganos.
Para explicar-me, começo repetindo escritos meus de outros momentos e mesmo alguns que o leitor habitual de Educação em Pauta já conhece de diferentes artigos aqui publicados.
– A leitura pode melhorar as relações entre o sujeito e o mundo, conferindo ao indivíduo condições de tornar-se sujeito, agente, autor de sua história.
– Ler não é apenas interpretar os objetos-livros e, muito menos, exclusivamente as obras literárias.
– Ler é construir sentidos, provindos de repertórios particulares e de outros, oriundos da coletividade e da história humanas, e sempre estimulados pelas estratégias textuais. Em decorrência, pode, sim, haver interpretações equivocadas. Sírio Possenti afirma que a tão proclamada "minha leitura" e a leitura errada não são opostas. O processo interpretativo é "semiose infinita" (Umberto Eco), o que não equivale a dizer que qualquer interpretação é validada pelo texto. Significa que estamos sempre significando – e sendo significados.
– Ler significa ir ao encontro do texto, interagir e criar interlocução com ele, sem ignorar seu criador, o autor. É estabelecer um diálogo interativo e inter-criativo.
– Qualquer texto (também os não-verbais, que se mesclam, completam, articulam e multiplicam, como o cinema, o teatro, a publicidade, o corpo…) está à disposição do leitor para que se processe a interpretação.
Ampliando a reflexão: qualquer texto faz de mim um leitor melhor, mais interessado, mais criterioso no julgamento, mais humano, melhor cidadão?
Eliana Yunes afirma, parafraseando conhecido ditado: "Dize-me o que lês, e te direi quem és." A verdade dessas palavras podemos constatar no contínuo diálogo que travamos, ao longo do exercício do magistério, com alunos e colegas. O mistério das escolhas que cada um deles realiza, ao longo do trabalhoso exercício de conviver com os textos, se converte, por vezes, numa meticulosa indagação a respeito dos critérios que orientam a decisão de ler este ou aquele livro, de assistir a este ou àquele filme, de ouvir uma ou outra canção.
As escolhas traçam o percurso e desenham o perfil dos leitores. Como qualquer outra seleção que fazemos na vida (roupa, alimento, companhia), nossa história pode tomar rumos diferentes. Decisões levam ao alargamento de horizontes ou conduzem ao abismo, outras abrem atalhos ou ampliam avenidas, algumas se transformam em paisagem enquanto outras perdem-se nas pedras do caminho.
Por isso, cada leitor define sua história pelas escolhas que fez ou a que se submeteu, e esse repertório torna-se mapa, carteira de identidade, fotografia.
A escritora Lygia Bojunga percorreu algumas cidades do Brasil, a partir de 1987, apresentando uma belíssima narrativa sobre sua história de leitora. A Editora Agir editou o texto em 1988: Livro, um encontro com Lygia Bojunga Nunes. Sucederam-se várias edições. Ali está narrada a relação afetiva da escritora com outros autores, denominados "casos de amor", em número de seis. Confessáveis, apenas cinco: Monteiro Lobato (origem de tantas outras histórias de leitores!!), Dostoiévski (de tão poucos!), Edgar Allan Poe, Rainer Maria Rilke e Fernando Pessoa. Um elenco da maior importância. Mas um deles foi "um caso meio vergonhoso", resguardado pelo anonimato.
Lygia Bojunga experimentou momentos de enlevo e prazer ao ler uma obra considerada de "romantismo viscoso", com deficiente mistura de violência, erotismo e suspense, composta conforme receitas de conquista de um público menos seletivo. Ela confessa: "Eu saía daqueles encontros me sentindo assim…poluída. Mas era feito fumar, me poluindo ou não, toca a ler o fulano."
O recurso ao anonimato reflete a contestação consciente a uma biografia leitora composta por nomes canônicos, respeitados em uníssono pela crítica especializada. Interroga, inclusive, a possibilidade de leitores maduros inclinarem-se favoravelmente para obras secundárias.
Apresentamos dois argumentos poderosos para entender essa inclinação: o primeiro diz que não temos suficiente distância histórico-temporal para discernir a importância dos escritos quando estamos por eles diretamente envolvidos; o segundo afirma que a formação do leitor deve levar em consideração, mais do que a coerência da lista de autores canônicos, a diversidade dos textos que compõem a cultura somada à disposição diferenciada do espírito no tempo, no espaço e nas circunstâncias da vida. Em férias, em momentos de profundo pesar, quando a felicidade nos envolve constituem desejos de livros diferenciados.
Quantos de nós lemos sobre determinados assuntos governados mais pelo momento da vida do que pela classificação de alta ou boa literatura? Como selecionamos os livros que levaremos para ler à beira do mar? Numa rede confortável no campo? Numa noite de inverno?
O que seria da leitura proibida, subversiva ou de entretenimento se lêssemos apenas o autorizado pela escola, pela academia ou pela crítica literária?
Portanto, ir aos livros é ação precedida sempre pela escolha, que é volúvel qual "piuma al vento" e está subordinada a paixões, nem sempre nominadas.
Convidar à leitura é admitir a seleção feita por leitores que nem sempre atendem ao que consideramos "alta qualidade", "boa literatura", "textos relevantes" e por aí afora. Relevante é que esses leitores possam, num tempo qualquer, separar as pérolas das conchas, a areia das pedras, o diamante da ganga bruta, pois a comparação sempre foi um critério confiável de julgamento e aprendizagem.
Ofereçamos ao leitor o acesso a um amplo e diversificado repertório, para que ele possa fazer suas escolhas e arrepender-se, ou não, delas mais tarde. Reconhecendo, porém, que teve liberdade para constituir-se sujeito de suas opções.