Leia abaixo a íntegra do discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, conforme divulgado pela Secretaria de Imprensa da Presidência:
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de lançamento institucional do Programa Fome Zero e instalação do Consea Palácio do Planalto
I
A instalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, o Consea, que hoje realizamos, é mais um passo institucional decisivo de meu governo na luta contra a fome.
Um passo importante, fundamental, que vai permitir a implantação do Programa Fome Zero em todo o Brasil, com a criação dos Conseas estaduais e municipais.
O Consea vem somar-se ao Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, que tive a iniciativa de instituir no primeiro dia do meu governo.
O Programa Fome Zero é complexo. Tão complexo quanto o inimigo que ele se propõe a derrotar.
Ele reúne um conjunto de ações simultâneas que serão desenvolvidas ao longo dos quatro anos de governo. E é composto por medidas emergenciais e por medidas estruturais, permanentes, aquelas que vão resolver em definitivo o problema.
O Fome Zero envolve praticamente todos os ministérios, os governos estaduais, as prefeituras municipais, as entidades da sociedade organizada, as empresas e a população.
Todos terão um papel a desempenhar nesse histórico desafio. E todos, a seu tempo, serão convocados para ajudar nessa guerra.
Hoje estamos dando um grande passo. E sei que até atingirmos nossa meta, será uma longa caminhada.
A fome não será vencida da noite para o dia, nem apenas com algumas medidas isoladas do governo.
A vitória contra a fome vai exigir muito esforço, muita persistência, muita coragem e dedicação de todos nós, durante os próximos quatro anos.
Sei que muitos, antes de mim, tentaram enfrentar de algum modo o problema da fome no Brasil. E se não o solucionaram, foi porque essa causa não teve a prioridade que merece nem contou com a indispensável mobilização da sociedade.
A fome não é um problema só do Brasil. Ela é hoje um flagelo mundial que castiga bilhões de seres humanos em todo o planeta. Nós, brasileiros e brasileiras, temos a obrigação de fazer a nossa parte. Mas as nações mais ricas também têm que fazer a parte delas.
Foi por isso que fiz questão de levar a Davos a causa do combate à fome, para incluí-la na agenda dos países e dos empresários mais ricos do mundo.
II
A luta contra a fome é, na verdade, um passo fundamental para a superação da miséria, da pobreza, da falta de oportunidades e da desigualdade social.
E é por isso que o Fome Zero é mais, muito mais do que um programa de doação de alimentos. Essas doações emergenciais são necessárias, mas todos sabemos que não acabam com o problema.
É preciso não apenas neutralizar os efeitos da fome, mas sobretudo atacar as suas causas.
Vamos criar as condições para que todas as pessoas no nosso país possam comer decentemente três vezes ao dia, todos os dias, sem precisar de doações de ninguém.
E quando digo comer, não estou falando apenas de encher a barriga. Isso, as famílias do semi-árido nordestino já fazem precariamente há séculos, dando aos seus filhos os poucos alimentos que possuem, mas sem o mínimo conteúdo nutricional.
Porque fome é, sim, falta de comida. Mas é também não ter uma alimentação adequada.
Fome é não poder consumir todas as proteínas, vitaminas, calorias e sais minerais que o nosso corpo e a nossa mente precisam para se desenvolver. Que as nossas crianças precisam para estudar e aprender. Que um adulto precisa para se capacitar e trabalhar.
É por isso que não adianta apenas distribuir comida. Se não atacarmos as causas da fome, ela sempre irá voltar, como já aconteceu outras vezes em nossa história.
O Projeto Fome Zero combina, de um modo novo, o emergencial com o estrutural. É preciso dar o peixe e ensinar a pescar.
Ensinar a pescar é criar empregos nas regiões onde hoje existe fome e pobreza.
Ensinar a pescar significa melhorar as condições de vida da população.
Ensinar a pescar é dar ao povo uma educação de qualidade. É saúde digna. É salário e renda.
Ensinar a pescar é fazer a reforma agrária. É incentivar a agricultura familiar. É estimular o cooperativismo, o micro crédito e a alfabetização.
Ensinar a pescar é preparar as pessoas para uma profissão e um emprego. É criar condições para que elas se sustentem sozinhas.
Ensinar a pescar, enfim, é libertar milhões de brasileiros, definitivamente, da humilhação das cestas básicas. É fazer com que todos, absolutamente todos, possam se alimentar adequadamente sem que para isso precisem da ajuda dos outros.
Outro dia vi na televisão um senhor que catava alimentos no lixo. Ele tinha um pedaço de melancia nas mãos. E quando lhe perguntaram porque estava fazendo aquilo, respondeu: “Porque eu tenho fome”. E em seguida, abriu um sorriso e disse: “Mas eu sei que o Lula, lá em Brasília, está pensando em alguma coisa para que eu não tenha mais que catar comida no lixo”.
Esse, senhoras e senhores, é o tamanho do nosso desafio. E terá de ser também, o tamanho do nosso esforço e do nosso trabalho.
III
O Brasil não pode mais continuar convivendo com tanta desigualdade.
O povo brasileiro, mesmo com fome, já deu inúmeras provas de seu talento, de sua criatividade, de sua capacidade e de sua tolerância. Minha própria história pessoal é uma prova disso.
Imaginem então a nação que seremos, no dia em que todos os brasileiros puderem fazer três refeições ao dia!
É por isso que insisto: o Fome Zero não deve ser entendido como mais uma campanha temporária e emergencial contra a fome em algumas regiões do país.
Ele é isso também, porque, como dizia o saudoso Betinho, “quem tem fome tem pressa”.
Quero convocar a todos os prefeitos e a todos os governadores, muitos dos quais nos honram hoje com a sua presença, para se engajarem nessa luta.
Sem a participação decidida dos governos estaduais e das prefeituras, será impossível montar a rede de coleta e distribuição de alimentos que os brasileiros de todo o país estão querendo doar.
Sem essa solidariedade espontânea da população, e sem o engajamento de governos estaduais, prefeituras e sociedade organizada, nós não vamos ganhar essa guerra.
Faço aqui um apelo a todos os municípios, a todas as entidades sociais, aos sindicatos, às comunidades religiosas e às associações dos mais diversos tipos: comecem já, hoje ainda se possível, a criar os Conselhos de Segurança Alimentar em suas cidades. Tomem a iniciativa!
Nos Conseas municipais deve acontecer a soma do poder público e da sociedade organizada. Eles têm uma missão decisiva no Fome Zero. São os que vão identificar as famílias necessitadas. São os que vão orientar as entidades que atuarão diretamente junto à população.
São os que vão armar em cada município e em cada bairro, os postos de recepção e distribuição de alimentos. São os que vão zelar para que não aconteçam as velhas e tristes cenas de desvios e desperdícios.
Estou seguro de que temos todas as condições necessárias para virar essa página.
Respira-se no Brasil de hoje um clima de esperança e de orgulho. A sociedade alimentada demonstra sua fome de participar.
É um outro tipo de fome. É fome de dignidade, é fome de saúde, é fome de segurança, é fome de auto-estima.
E todos nós, do governo, dos Conseas, das entidades sociais, das prefeituras e dos governos estaduais, somos responsáveis por manter vivo esse sentimento tão bonito e tão raro de solidariedade geral, de vontade de dar certo.
Do empenho, da seriedade e da organização dos Conseas, vai depender a credibilidade do programa e a continuidade dessa esperança.
IV
Quero aproveitar este ato para agradecer às empresas, entidades, personalidades e às pessoas de todo o Brasil que ligam e escrevem oferecendo apoio e perguntando como podem ajudar.
Num país do tamanho do Brasil, iniciar qualquer campanha de coleta de alimentos é uma verdadeira operação de guerra. E deve ser feita com muito cuidado e planejamento para que todo esse enorme esforço atinja plenamente os objetivos.
Não vamos permitir que o Fome Zero, nesse seu início, venha a ser atropelado por uma avalanche de doações que precisam ser corretamente organizadas.
A partir de agora, todos os senhores e senhoras estão convocados a trabalhar, durante os próximos quatro anos, para acabar de vez com essa vergonha nacional que é a fome.
“Fome e guerra não obedecem a qualquer lei natural ? são criações humanas.” Esta frase é de um conterrâneo nosso, pernambucano, médico e geógrafo, que foi o fundador e primeiro presidente da FAO, teve duas indicações ao Nobel da Paz, e morreu de saudades do Brasil, exilado na França, durante o regime autoritário. Estou falando de Josué de Castro, autor do clássico Geografia da Fome, que há mais de 50 anos interpelou a consciência da humanidade com a exposição dessa tragédia.
Precisamos vencer a fome, a miséria e a exclusão social. Nossa guerra não é para matar ninguém ? é para salvar vidas.
Muito obrigado.