Lei Seca: menos mortes, mais impunidade

Não há dúvida que a Lei Seca (11.705/2008), que está cumprindo seu primeiro aniversário, contribuiu para a redução do número de mortes (-2% nas rodovias federais, comparando-se o primeiro com o segundo semestre de 2008). Cresceu o número de acidentes (+7%) e de feridos (+4%). No Estado de São Paulo houve economia de 17 milhões de reais. Nas Capitais a redução das mortes (no segundo semestre de 2008) foi de 22,5%. Apesar dos números favoráveis, é certo que o Brasil continua sendo um dos países mais trágicos nessa área: quinto colocado no mundo, com 35,1 mil mortes em 2007, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.

A redução das mortes se deve à lei ou à fiscalização? A fiscalização severa logo após a edição da referida lei foi que conseguiu mobilizar grande parte da sociedade e alterar o comportamento de muitos motoristas. O maior equívoco consiste em imaginar que leis mais duras são (por si sós) suficientes. A fiscalização é que é decisiva, ao lado da educação, conscientização, (boa) engenharia e punição. Esses são os cinco fatores que, somados, podem colocar o Brasil em patamares numéricos dos países mais civilizados.

Na sua parte criminal a Lei Seca, diferentemente do que foi propagado, acabou trazendo impunidade a muitos motoristas que cometeram crimes sob embriaguez. Os tribunais de justiça, especialmente o de São Paulo, começam a reconhecer isso. Antes da Lei 11.705/2008 o crime de embriaguez ao volante (artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro) não quantificava nenhuma taxa de alcoolemia. Bastava a comprovação de um condutor bêbado e uma direção anormal, que é a que coloca em risco a segurança viária. Agora só existe crime quando a concentração de álcool atinge o nível de 0,6 decigramas por litro de sangue, conforme o estipulado na lei.

Conclusão: todas as pessoas que estão sendo processadas ou que já foram condenadas por direção embriagada, cometida até o dia 19 de junho de 2008, desde que tenham sido surpreendidas com menos de 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue ou que não haja prova suficiente sobre a taxa de alcoolemia, foram “anistiadas”. Todas! Houve abolição do delito. Em outras palavras: o que antes era delito se transformou em mera infração administrativa. Nenhuma consequência penal pode subsistir para esses motoristas. Conclui-se que a citada lei, na parte criminal, acabou beneficiando pessoas processadas ou condenadas.

A Lei Seca, de outro lado, é também extremamente favorável aos que já delinquiram depois dela ou ainda vão delinqüir daqui para frente. Erraticamente ela exige (repita-se) 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue. Mas as formas correntes de se constatar a taxa de dosagem alcoólica (exame de sangue e bafômetro) são meios probatórios problemáticos (porque ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo). Aliás, no que diz respeito ao bafômetro, a polêmica é ainda maior porque haveria dúvida sobre sua eficácia para comprovar a taxa exata de álcool no sangue. Sobre o assunto há uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) proposta pela Associação de Bares e Restaurantes que tramita no Supremo Tribunal Federal. Pelos precedentes dessa Corte, dirão os Ministros (certamente) que ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo.

A Lei Seca teve a virtude de sacudir a polícia e a sociedade brasileira e chegou a alterar o comportamento dos motoristas nos seus primeiros dias de vigência. A sua parte administrativa, que é muito boa, desde que combinada com a severa fiscalização, pode efetivamente gerar uma nova cultura, a de jamais dirigir depois de beber. Tudo isso, num país que vem sendo dizimado anualmente por uma quantidade exorbitante de acidentes, feridos e mortes, é muito positivo. No entanto, reitere-se, na sua parte criminal foi um desastre. Ao exigir uma determinada dosagem alcoólica (0,6 decigramas) beneficiou não só os delinqüentes pretéritos, criando uma forma de “anistia”, senão também os atuais e futuros, em razão da dificuldade de comprovação da referida dosagem alcoólica. Nesse ponto a lei precisa ser reformada urgentemente.

Outro detalhe traumático consiste na relativa leniência da lei brasileira em relação a quem mata, no trânsito, estando sob a influência do álcool ou substância análoga. As sanções atuais (perda da carteira, retenção do veículo, multa e prisão de dois a quatro anos) são muito brandas. Na Espanha, só para citar um exemplo, mais de mil pessoas foram presas e ficaram recolhidas durante o ano de 2008 por terem matado no trânsito sob condução embriagada (El País de 30/9/08, p. 12).

No verão de 2008, no país citado, morreram 450 pessoas. Esse número é idêntico ao do verão de 1964, com uma diferença: em 1964 lá havia dois milhões de veículos, enquanto em 2008 estavam trafegando trinta milhões (El País de 2/9/08, p. 14). A dura lei de perda de pontos e do encarceramento (nos casos mais graves), somada a uma efetiva fiscalização e boa engenharia, está contribuindo decisivamente para a drástica redução no número de acidentes e de mortes.

O legislador brasileiro deve analisar a tragédia automobilística nacional com a devida atenção e urgentemente. Não podemos continuar ocupando uma das primeiras posições no mundo em matéria de violência no trânsito, que nos custa 35 mil mortes, 400 mil feridos, 1,5 milhão de acidentes e R$ 22 bilhões por ano, só para cobrir gastos com desastres nas estradas federais.

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