O segmento de eventos e marketing promocional vive, com especial intensidade, o drama dos “repasses”. Na consecução de suas atividades, as empresas do setor comumente ou, melhor até, necessariamente encetam contatos com uma variada gama de fornecedores de insumos e serviços necessários à realização evento que se encarregaram de organizar. Está-se a falar de fotógrafos, produtores, locadores de equipamentos, empresas cedentes de mão-de-obra temporária, serviços de buffet, empresas de adesivagem e comunicação visual etc.
Por uma imposição natural do mercado, normalmente a relação com todos esses fornecedores é estabelecida diretamente pela organizadora do evento, que orça os respectivos custos e os submete à prévia aprovação do seu cliente. Assim, os valores desses serviços sub-contratados transitam pela conta da organizadora de evento, que ato contínuo repassa-os aos seus verdadeiros credores, que são os respectivos fornecedores. Debate-se, nesse cenário, se a base de cálculo do Pis e da Cofins das organizadoras de eventos deve ou não contemplar tais “repasses”, que não raro montam cifras muitíssimo mais expressivas do que o montante que efetivamente remanesce consigo.
Desde a revogação do art. 3º, §2º, III da Lei nº 9.718/98 – que, no interregno em que vigeu, tinha sua eficácia condicionada a uma regulamentação infralegal que nunca sobreveio -, não havia no direito positivo previsão expressa que, apaziguando o debate, determinasse a exclusão dos repasses da base dos tributos incidentes sobre a receita.
A doutrina, até aqui sem grande eco na jurisprudência, procura explicar que não se pode excluir de uma grandeza algo que a ela nunca se integrou. A previsão revogada da Lei nº 9.718/98 não excluía verdadeiramente os repasses da grandeza denominada “receita bruta”, mas apenas aclarava, pedagogicamente, que aqueles não integravam este conceito.
Pois a Lei nº 11.771/08 – conhecida como “Lei Geral do Turismo – LGT” – jogou, a nosso ver, luzes novas à questão, ao menos para o segmento específico de eventos. Explica-se.
Com o escopo de instituir a “Política Nacional de Turismo”, a lei catalogou as empresas “prestadoras de serviços turísticos”, obrigando-as a se cadastrar no Ministério do Turismo (art. 22). Dentre essas prestadoras de serviços turísticos, a LGT inseriu – juntamente com meios de hospedagem, agências de turismo, transportadoras etc. – as organizadoras de eventos (art. 21, IV).
Regulamentando o art. 10, XXI da Lei nº 10.833/03, a Portaria Interministerial MF/MTur nº 33/05 dispôs que as empresas organizadoras de eventos cadastradas do Ministério do Turismo sujeitam-se ao sistema cumulativo de apuração de Pis e Cofins. Como a LGT tornou esse cadastro obrigatório, é lícito afirmar que o regime cumulativo passou a ser o regime de apuração necessário e único daquele segmento.
Ao julgar inconstitucional o art. 3º, §1º da Lei nº 9.718/98 (RExt nº 390.840-5), o STF manteve as dimensões de base de cálculo definidas na Lei Complementar nº 70/91. Para o regime não-cumulativo das contribuções, contudo, a Lei nº 10.833/03 cuidou de novamente disciplinar a alargar-lhes a base; e, sendo esse véiculo legislativo posterior à Emenda Constitucional nº 20, não padeceu do mesmo vício identificado pelo STF na Lei nº 9.718/98. Assim, para o regime não-cumulativo, a extensão da base de cálculo para a receita bruta não é passível de ser contestada.
Mas, no regime cumulativo, a base imponível do Pis e da Cofins segue limitada aos contornos da LC nº 70/91, portanto circunscrita às receitas provenientes de “vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza” (art. 2º).
Assim, para se identificar, com clara e pacífica precisão, a base imponível do Pis e da Cofins cumulativos, basta saber o que sejam “preço de venda de mercadorias” e “preço de venda de serviços”.
Pois a LGT diz textualmente o que se há de considerar preço dos serviços das organizadoras de eventos. Confira-se:
“Art. 30. §2º. O preço do serviço das empresas organizadoras de eventos é o valor cobrado pelos serviços de organização, a comissão recebida pela intermediação na captação de recursos financeiros para a realização do evento e a taxa de administração referente à contratação de serviços de terceiros”.
São, pois, três as grandezas que compõem o preço do serviço de organização de eventos: (i) os honorários pela sua organização propriamente, (ii) a comissão pela eventual captação de patrocínios e (iii) o eventual valor cobrado pela coordenação e contratação de fornecedores (conhecido como “taxa de administração”).
Dessas três grandezas, a última delas nos interessa de perto. Se apenas a taxa de administração sobre a contratação de terceiros integra o preço do serviço, é porque o valor repassado aos terceiros não o integra. Afinal, não é razoável supor que o legslador, querendo referir-se ao todo, haja mencionado somente a parte…
A LGT, portanto, consagra a exclusão dos repasses da base de cálculo de Pis e Cofins das organizadoras de eventos. Faz, para esse especial segmento, o que o art. 3, §2º, III da Lei nº 9.718/98 tentou, mas nunca conseguiu, fazer para todos os contribuintes…
Há quem recuse os efeitos aqui enxergados para o art. 30, §2º da LGT, ao argumento de que a LGT não seria uma “lei tributária”. O entendimento é insustentável por ao menos três razões.
Em primeiro lugar, porque não existe “lei tributária” ou “lei civil” ou “lei comercial” etc. Trata-se de taxionomia afeita à ciência do direito, não ao direito positivo. Ao prescrever que cada lei terá um único objeto, vedada a inserção de matérias a ele estranhas, o art. 7º, I e II da Lei Complementar nº 95/98 não disse que cada lei somente pode abordar um único ramo da dogmática jurídica. A LGT obedece à LC 95/89 porque é, sim, monotemática, disciplina um único objeto, qual seja, o Sistema Nacional de Turismo, em todos os seus aspectos – comerciais, administrativos e, por que não, fiscais.
Em segundo lugar, o próprio art. 5º, XV da LGT enumera, como um de seus objetivos, “contribuir para o alcance de política tributária justa e equânime”. É, pois, de se esperar que se extraiam de seus enunciados normas com repercussão tributária.
Finalmente, não há outra finalidade ou utilidade potencial para o art. 30, §2º da LGT que não a de formatar a base de cálculo dos tributos incidentes sobre a receita. Se esse dispositivo não disciplina a base imponível de tributos, e se os enunciados prescritivos não têm excertos inúteis, não conseguimos imaginar qual seja a sua eficácia normativa…
Ao que pudemos apurar, a Receita Federal ainda não manifestou, até aqui, sua compreensão acerca do art. 30, §2º da LGT, seja em atos declaratórios normativos, seja em soluções de consultas. Tampouco a doutrina do direito tributário dedicou-se ao tema, e mesmo as empresas do setor – as grandes beneficiárias da nova previsão legal – não parecem haver atentado ou se mobilizado em torno dele.
Pelo relevantíssimo impacto sobre a tributação do setor, é só uma questão de tempo até que a referida norma entre na pauta dos operadores do direito.
Paulo Roberto Andrade é Mestre em direito tributário pela USP. Sócio do escritório Tranchesi Ortiz, Andrade e Zamariola Advocacia.