Mateus Eduardo N. Bertoncini

Lei Maluf: tributo à corrupção e à impunidade

O Deputado Federal Paulo Maluf é autor do Projeto de Lei 265/2007, que está prestes a ser votado no Congresso Nacional, visando alterar a Lei 4.717/1965 chamada Lei de Ação Popular , a Lei 7.347/1985 denominada Lei de Ação Civil Pública e a Lei 8.429/1992 conhecida como Lei de Improbidade Administrativa.

Segundo o projeto, a ação popular que for julgada improcedente poderá condenar o cidadão, autor da ação, ao pagamento do décuplo das custas, mais honorários advocatícios, bastando para tanto que a sentença reconheça tratar-se a medida de “lide manifestamente temerária” ou que o autor tenha ajuizado a ação “com má-fé, intenção de promoção pessoal ou visando perseguição política”.

Pelas mesmas razões, mudança assemelhada é pretendida na Lei de Ação Civil Pública, para condenar a associação autora ou o membro do Ministério Público subscritor da ação ao pagamento de custas, emolumentos, despesas processuais, honorários periciais e advocatícios.

O projeto pretende alterar a Lei de Improbidade Administrativa, para instituir, além da sanção penal já existente, “que o denunciante ou o membro do Ministério Público está sujeito a indenizar o denunciado pelos danos materiais ou à imagem que houver provocado”.

A justificativa parlamentar reside na garantia do uso responsável da ação popular, da ação civil pública e da ação de improbidade administrativa, “obrigando o autor ou membro do Ministério Público que ajuíza ações de maneira temerária, com má-fé, intenção de promoção pessoal ou perseguição política a indenizar os prejuízos causados à autoridade injustiçada”.

Fazendo uso de um raciocínio puramente político e distante da realidade, o parlamentar enxerga nas ações constitucionais antes referidas instrumentos de perseguição colocados pela Constituição de 1988 nas mãos dos cidadãos (ação popular) e dos Promotores de Justiça e Procuradores da República (ação civil pública), sempre ávidos por cometerem injustiças contra autoridades públicas. Ledo engano.

Ignorando a realidade nacional, o projeto de alteração legal dá a impressão que a atuação dos nossos políticos é marcada, invariavelmente, por condutas de induvidosa boa-fé, impessoalidade e incontestável lisura político-administrativa, sendo os continuados, ininterruptos e graves escândalos de corrupção na Administração Pública, em todos os níveis, culpa de cidadãos mal intencionados, de membros do Ministério Público sedentos por promoção pessoal e de uma imprensa denuncista todos esses atores conluiados com o propósito de perseguição política das nossas imaculadas autoridades da República.

Com efeito, não há dúvida que temos no universo político brasileiro uma maioria de homens públicos sérios, mas não podemos olvidar da parcela não comprometida com a probidade administrativa, responsável pelos seguidos casos de corrupção.

O projeto não está preocupado em evitar injustiças. Quer, na verdade, municiar essa parte do poder político não comprometida com a legalidade, a moralidade administrativa e a probidade administrativa com mecanismos de ataque pessoal contra cidadãos e membros do Ministério Público que ousarem acionar na Justiça autoridades públicas por intermédio de ação popular ou ação civil pública, destinadas a imputar ilegalidades e responsabilidades por atos de improbidade contra esses agentes, conforme autorizado na Constituição e nas leis que o projeto pretende alterar.

O que se almeja, com a mudança, é o que Rui Barbosa já denominava entre nós de “regime de impunidade” (Comentários à Constituição Federal brasileira, v.3, Saraiva, 1933, p. 457).

Quer a alteração legislativa mecanismos de vingança efetivos, pers,uasivos para inibir cidadãos, Promotores de Justiça e Procuradores da República, condenando-os à prisão e ao pagamento de indenizações, pela simples razão de exercerem a missão de controle da Administração Pública, impugnando os atos lesivos à lei e à probidade administrativa, na defesa do interesse público, do interesse da sociedade brasileira, historicamente atingida por volumosa corrupção administrativa, responsável por disfunções inaceitáveis do Estado brasileiro, alimentadoras de oligarquias políticas corruptas e impunes que se instalaram nas nossas Administrações Públicas, verdadeiras representantes da cultura de corrupção que atinge o Brasil desde sempre. O “mensalão do Distrito Federal”, do ex-governador Arruda, é exemplo recente e revelador dessa ordem.

Caso sejam aprovadas as alterações, a conseqüência concreta para a população brasileira será o fim das ações populares e das ações civis públicas destinadas a combater as irregularidades praticadas contra o patrimônio público, pois o cidadão ou a pessoa do Promotor de Justiça que ousar intentar qualquer medida judicial, estará sujeito a responder com o seu patrimônio pessoal e com a sua liberdade, posto que o seu trabalho será naturalmente interpretado como uma tentativa para criar “situações vexatórias que desgastam irreparavelmente a honra e a dignidade de autoridades injustamente acusadas”, consoante justificativa apresentada pelo Deputado.

Partindo dessa lógica, como ninguém admite ser acusado, justa ou injustamente, a resposta do poder político será sempre a mesma: a imputação de responsabilidade pessoal civil e criminal ao autor da medida, que se tornará presa fácil nas mãos dos advogados contratados por políticos processados, municiados com esses contundentes instrumentos de vingança.

Em última análise, o único controle relativamente eficaz contra os atos de corrupção, que é o controle judicial, rapidamente cessará, ante a ausência de indispensável provocação popular ou ministerial, abrindo as portas para a corrupção incontrolável e a impunidade. É o que a população pode esperar se aprovada a Lei Maluf.

Os partidários desse projeto não querem justiça, legalidade e probidade. Não almejam o bem de todos, o fim da impunidade e da corrupção. Se quisessem, apresentariam projetos de lei para acabar com o foro privilegiado; para encerrar com a prescrição retroativa; para elevar as frágeis penas dos crimes contra a Administração Pública e dos crimes da Lei de Licitações e Contratos Administrativos; para instituir entre nós o crime de enriquecimento ilícito; para implementar a Convenção Interamericana Contra a Corrupção e a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção. Na contramão de uma política nacional de combate à corrupção, o que o projeto de lei visa é calar a cidadania e tornar inerte o Ministério Público, corrompendo a natureza ativa e independente da Instituição.

A legislação atual é suficientemente rigorosa contra ações irresponsáveis de cidadãos e membros do Ministério Público. A pretensão de permitir à defesa o ataque à pessoa do Promotor é um evidente excesso, que a rigor visa deslocar a discussão sobre os fatos e provas do processo, para a pessoa do autor, visando censurá-lo, numa perspectiva política (má-fé, promoção pessoal, perseguição política), o que é evidentemente impróprio e inconstitucional.

A pretensão é imprópria porque os Promotores de Justiça possuem a prerrogativa de “inviolabilidade pelas opiniões que externar ou pelo teor de suas manifestações processuais ou procedimentos, nos limites de sua independência funcional”, conforme previsto na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (art. 41, V), conhecida como o Estatuto do Ministério Público dos Estados (Lei 8.625/1993).

Como o projeto afeta essa prerrogativa funcional, extinguindo-a, a consequência lógica disso é a de que a al,teração proposta sofre de insuperável vício de origem, porquanto somente o Presidente da República poderia, em tese, propor alteração dessa ordem na Lei Orgânica do Ministério Público, cuja iniciativa lhe pertence privativamente, conforme o disposto no art. 61, §1.º, inc. II, “d”, da Carta de 1988. Portanto, esse projeto que visa alterar as Leis 4.717/1965, 7.347/1985 e 8.429/1992, jamais poderia dispor sobre tema estranho a essas leis, enxertando indevidamente dispositivo revogador de prerrogativa funcional dos Promotores de Justiça e Procuradores da República previstos na Lei Orgânica.

O projeto também é inconstitucional porque objetiva inibir o exercício da cidadania, desestimulando o controle popular da Administração Pública por meio da ação popular, e, por via reflexa, o próprio controle judicial (art. 5.º, XXV e LXXIII, CF).

Fere novamente a Constituição porque tenta imputar responsabilidade pessoal ao membro do Ministério Público, agente político do Estado, no lugar da responsabilidade objetiva do próprio Estado (art. 37, § 6.º, CF), que possui contra o integrante da Promotoria de Justiça ou da Procuradoria da República ação regressiva no caso de dolo ou culpa do agente. Sendo assim, quem está autorizado pela Constituição para acionar o membro do Ministério Público faltoso é o Estado e não o réu, como viciadamente deseja o projeto.

Intenta a pretensão legislativa com essa indevida responsabilização pessoal, abalar a mais preciosa garantia constitucional dos Promotores de Justiça e Procuradores da República: a autonomia e a independência funcional (art. 127, § 1.º, CF), da qual a inviolabilidade de opinião decorre.

Maluf sabe que é essa garantia que confere aos Promotores de Justiça dos Estados e aos Procuradores da República a indispensável imunidade às ações, pressões e manobras políticas, exatamente para que possam enfrentar sem qualquer impedimento, nos termos da lei e do Direito, a corrupção política e a impunidade, denunciando os ímprobos e os criminosos à Justiça, independentemente do estamento a que pertençam.

Deveria o parlamentar também saber que a afronta a esse princípio constitucional do Ministério Público, evidentemente importa em projeto natimorto de lei ordinária.

O projeto, em última análise, não é uma resposta às injustiças cometidas contra autoridades públicas, mas a replicação à ação responsável e eficaz dos órgãos do Ministério Público, que têm alcançado resultados positivos às suas ações civis públicas por atos de improbidade administrativa em face do Poder Judiciário, contrariando a lógica da corrupção e da impunidade.

Como já ensinava Pontes de Miranda, “a inserção do Ministério Público na tratação institucional da Constituição explica-se pela natureza obrigatória do ofício. Não se pode cercear; ou tolher, ou dirigir a liberdade de juízo, de pensamento e de ação, do Ministério Público” (Comentários ao Código de Processo Civil, tomo II, 3.ª ed., Editora Forense, 1995, p. 174).

A atualíssima lição de Pontes de Miranda não poderia ser ignorada pelo Deputado Paulo Maluf, pois certamente, após longa trajetória política, conhecia perfeitamente as disposições constitucionais acima indicadas e a prerrogativa funcional de inviolabilidade de opinião dos membros do Ministério Público.

Disso decorre que a proposta está envolvida em má-fé, posto violar a cidadania e a autonomia do Ministério Público; representa manifesta intenção de promoção pessoal, porque mantém na mídia seu autor, criando em torno dele a imagem de um político poderoso e destemido, que afronta e subjuga quem quer que seja; representando, por fim, evidente perseguição política, por meio do exercício do mandato parlamentar, daqueles que legitimamente o denunciaram aos tribunais tornando-o réu e procurado pela Interpol.

Na perspectiva da racionalidade invocada pelo parlamentar, o seu Projeto de Lei 265/2007 repres,enta abuso das prerrogativas asseguradas aos membros do Congresso Nacional, o que configuraria procedimento incompatível com o decoro parlamentar, causa de perda do mandato, conforme o disposto no art. 55, inc. I, da Constituição Federal.

Enfim, a Lei Maluf, por violar a cidadania e a autonomia do Ministério Público, é um verdadeiro tributo à corrupção e à impunidade, merecendo ser rejeitada e sepultada pelos insuperáveis vícios que contém, pela maioria digna e altiva dos nossos Deputados Federais e Senadores da República, componentes do digníssimo Poder Legislativo brasileiro, berço maior da Democracia, da República e do Estado de Direito.

Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini é Doutor em Direito do Estado pela UFPR, Professor do Programa de Mestrado em
Direito do Centro Universitário Curitiba e Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, desde 1988.

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