A declaração do Ministro Márcio Thomaz Bastos, recentemente, de que a lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90) deve ser revisada, gerou forte polêmica em todo país. Desde logo, impõe-se sublinhar que o Ministro não falou em revogação, sim, em revisão. E ele tem razão.
Primeiro porque de fato a proibição de progressão de regime nos crimes hediondos (a lei exige o cumprimento de 2/3 da pena em regime fechado) vem abarrotando todos nossos presídios. De 90 mil presos em 1990 o Brasil passou para 350 mil em 2004. A população brasileira não chegou a dobrar nesse período. A população carcerária multiplicou-se por quatro. O déficit de vagas é de quase metade (cerca de 170 mil vagas). A desumanidade e crueldade na execução da pena envergonha nosso país, tanto quanto a violência praticada pelos criminosos. Com tamanha violência nas ruas, nos presídios, nas escolas etc. jamais construiremos um país decente, onde viver não implique um risco permanente.
Em segundo lugar urge enfatizar que o legislador brasileiro, no momento de catalogar os crimes hediondos, acabou criando graves injustiças. Há crimes etiquetados como hediondos que não o são. Toque nas nádegas, beijo lascivo, falsificação de cosméticos etc.. Tudo isso é crime hediondo, de acordo com a legislação vigente. E é um exagero, além de causa de muitas aberrações. O rigor da lei reflete desproporcionalidade patente. A prudência nem sempre tem sido boa companheira do legislador brasileiro, que erra com freqüência (até porque, não sendo Deus, está mesmo sempre sujeito a equívocos).
Se de um lado a criminalidade, sobretudo a violenta, nos tem causado muita preocupação (a vida deixou de ter valor em muitas situações), de outro, também é certo que o Estado não está autorizado a desrespeitar a razoabilidade. Não se pode legislar para (só) satisfazer a volúpia sangrenta de setores da mídia ou mesmo da população. A racionalidade é a marca distintiva da raça humana. Somos seres superiores aos demais em virtude do uso da razão.
Algumas aberrações contidas na lei dos crimes hediondos (só equiparadas às aberrações da violência empregada por alguns criminosos) não exigem nenhuma providência do legislador. Os juízes, sobretudo do STF, acham-se mais do que autorizados para corrigi-las. É o caso da proibição da progressão de regime, que constitui mandamento infraconstitucional. Logo, basta que se admita a relatividade dessa imposição legal. Como?
Reconhecendo em sua total abrangência a força do princípio da razoabilidade, que é mandamento constitucional implícito no art. 5.º, inc. LIV (faz parte do princípio do devido processo legal, segundo jurisprudência tranqüila do Colendo Supremo Tribunal). Com isso o magistrado deve buscar a solução justa em cada caso concreto.
Quando exercia a judicatura no Estado de São Paulo tive oportunidade de fazer essas adequações da lei ao caso concreto. Lembro-me perfeitamente do caso de um estudante de medicina, quartoanista, primário, bons antecedentes, 24 anos de idade, que fumava maconha em sua habitação privada. Dele se aproximou outro estudante, da mesma classe, e pediu para compartilhar a droga. O primeiro cedeu parte dela. Ceder é um dos dezoitos verbos do art. 12 da Lei 6.368/76. É tráfico de entorpecente, ainda que entre adultos. Foi preso em flagrante. Concedi em seguida liberdade provisória e depois fixei o regime aberto. Aplicando o princípio da razoabilidade (no caso concreto), contrariei o frio texto da lei, mas não a Constituição brasileira (que é a lei das leis).
A letra fria da lei, que é feita de acordo com critérios abstratos, nem sempre se apresenta como instrumento justo nos casos concretos. Sendo assim, cabe ao juiz examinar cada um deles e dizer o direito justo em cada instante. O valor justiça, não se pode esquecer, é o valor-meta do Estado Constitucional e Democrático de Direito.
Nossa Corte Suprema tem condições de, desde logo, dirimir a polêmica (ainda que gerando outras). Aliás, está caminhando no sentido da flexibilização da lei dos crimes hediondos. No último dia 11.11.04 estava em julgamento o HC 82.959-SP, em que se discutia precisamente se cabe ou não a progressão de regime nos crimes hediondos. O placar, até agora, está 3 x 2 favorável à tese da progressão (Marco Aurélio, Carlos Ayres e Cezar Peluso x Joaquim Barbosa e Carlos Velloso).
Aguarda-se prudência e equilíbrio dos nobres julgadores. Não se trata de abrir as portas da cadeia, colocar na rua milhares de criminosos hediondos etc. Isso é pura exploração da mídia sangrenta. O que se espera é que, com clareza, possa o juiz contar com instrumentos capazes de se fazer justiça em cada caso concreto.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN, Consultor e Parecerista e Diretor-Presidente da TV Educativa IELF (1." TV Jurídica da América Latina com cursos ao vivo em SP e transmissão em tempo real para todo país Ä www.ielf.com.br).