Luiz Flávio Gomes

Lei de anistia: brilharam pela ausência as vítimas e seus direitos

Por 7 votos a 2 o STF, nos dias 28 e 29 de abril de 2010, decidiu manter intacta a lei brasileira de anistia (Lei 6.683/1979). Foi rejeitada a ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 153, proposta pela OAB, que pretendia o reconhecimento de que a lei não teria perdoado os torturadores do regime militar. Na decisão do STF brilharam pela ausência:

1. o respeito e o alinhamento com a jurisprudência e o direito internacionais. O julgamento do STF foi eminentemente legalista – só focou uma única fonte do direito: a lei – (ressalva deve ser feita ao voto de Lewandowsky, que tem formação internacionalista). Ignorou por completo todas as cobranças da ONU (que desde 2001 pede a revisão da lei de anistia brasileira, para permitir a punição dos torturadores da ditadura militar) assim como a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que vem declarando a invalidade de todas as “autoanistias” (leis de anistia aprovadas pelo próprio regime de exceção), no que diz respeito aos crimes contra a humanidade (crimes cometidos por agentes de um regime de exceção não são comuns nem políticos: são crimes contra a humanidade) (cf. casos Almonacid Arellano y otros vs. Chile, Barrios Altos etc). No caso Goiburú ficou consolidado o seguinte: (a) os Estados têm a obrigação de investigar e punir esses crimes; (b) cuida-se de obrigação que emana das normas de jus cogens; (c) trata-se de delito de execução permanente (até que se descubram os corpos). Sendo delitos permanentes, não se inicia a contagem da prescrição enquanto essa permanência não cessa, uma vez que a permanência se dá “enquanto seus autores continuem ocultando o destino e o paradeiro da pessoa desaparecida e enquanto os fatos não forem esclarecidos”.

2. o diálogo entre todas as fontes do direito (Erik Jayme, Mazzuoli etc.): a decisão do STF foi equivocada (do ponto de vista internacional) justamente porque não considerou todas as sete fontes do direito (leis, códigos, constituição, jurisprudência interna, tratados internacionais, jurisprudência internacional e direito universal). A jurisprudência da CIDH foi totalmente desconsiderada. O ius cogens (criado inclusive pela ONU) foi ignorado. Só resta agora aguardar a decisão da CIDH (que deve sair ainda neste ano) no caso Araguaia (espera-se a condenação do Brasil pela impunidade dos crimes contra a humanidade).

3. o respeito (amplo, geral e irrestrito) aos direitos das vítimas: dentre eles está o direito à verdade, que representa uma parte do direito à Justiça, que se completa quando os autores (dos crimes contra a humanidade) são punidos, as vítimas indenizadas e os valores da justiça e da dignidade são restabelecidos. A CIDH, a propósito, no caso “La Masacre de Mapiripán contra Colômbia”, deixou sublinhado que constitui dever imperativo do Estado o de remover todos os obstáculos fáticos e jurídicos que possam dificultar o esclarecimento judicial exaustivo das violações perpetradas (CIDH, 15.09.05).

4. as próprias vítimas (e/ou seus familiares): ressalvando-se honrosas e pouquíssimas exceções, onde estão as vítimas (e/ou seus familiares) dos torturadores? Por que não protestaram? Por que não fizeram passeata (que é um legítimo instrumento da democracia)? Dia 24/4/10, em Madrid, quase 100 mil pessoas protestaram em favor do Juiz Garzón e contra a impunidade dos delitos da época do General Franco. E no Brasil? O relator do caso, Min. Eros Grau, foi vítima da ditadura e paradoxalmente votou pela impunidade dos torturadores. E as outras vítimas? Na mídia não se registrou (s.m.j.) um único movimento delas (ou seja: faltou visibilidade para elas e para a defesa dos seus direitos). No julgamento do STF, com exceção dos Ministros Lewandowsky e Aires Britto, não se viu compaixão com as vítimas.

Comissão Nacional da Verdade: vários votos (que perdoaram os agentes da ditadura) foram favoráveis à descoberta da verdade dos fatos (Eros Grau, Celso de Mello etc.). Essa Comissão, que será criada em breve (espera-se), assim como a abertura dos arquivos da ditadura farão bem para todo mundo. Impõe-se o conhecimento da dim,ensão das graves violações aos direitos humanos (a começar pelo caso Riocentro), configuradoras de verdadeiros crimes contra a humanidade, que estão acima de eventuais leis de anistia, de regras internas de prescrição ou mesmo de sentenças favoráveis aos seus autores (CIDH, caso Velázques Rodríguez).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente da Rede de Ensino LFG e co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Blog: www.blogdolfg.com.br

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