De acordo com o artigo 5.º, inciso LXXIII, da Constituição da República de 1988, “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.
Verifica-se, pois, que a tutela ao meio ambiente restou enriquecida com mais este instrumento, isto porque a Lei n.º 4.717, de 29 de junho de 1965, editada para regular a ação popular, contemplava apenas e tão-somente a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público.
Tem-se entendido, todavia, até com certa unanimidade, tanto em doutrina, quanto em jurisprudência, que o conceito de “cidadão”, contido no texto constitucional retro, corresponde ao indivíduo que está em gozo de seus direitos políticos. Tanto é assim que, conforme o § 3.º, do artigo 1.º, da Lei n.º 4.717/65, “a prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral, ou com documento que a ele corresponda.”
Essa interpretação restritiva, porém, merece ao menos análise mais aprofundada. Com efeito, a mesma Constituição Federal, já em seu artigo 225, caput, preconiza: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Por esse dispositivo, percebe-se que o meio ambiente constitui direito de todos, de cada membro da sociedade. Lesado o meio ambiente, todos serão lesados; protegido o meio ambiente, a todos aproveitará. Trata-se de um direito meta-individual, que não se circunscreve ao âmbito restrito da individualidade das pessoas, à semelhança dos direitos subjetivos. Da outra face da moeda, conclui-se que o dever de proteção ao meio ambiente incumbe também a todos, a toda a sociedade, Poder Público ou ente particular, sem exceção.
Destaque-se: a defesa do meio ambiente, nos precisos termos constitucionais, não se trata, portanto, de opção, mas de imposição a “todos” os sujeitos que integram à sociedade. A omissão não se justifica. Ao revés, representa desapreço para com um dos valores fundamentais de nossa sociedade, porquanto a existência de um “meio ambiente ecologicamente equilibrado” é pressuposto para a “sadia qualidade de vida”. É, em outras palavras, pressuposto para a existência de vida. Sim, porque sem meio ambiente equilibrado, não há direito à vida. Em suma: direito ao meio ambiente é direito à vida.
A propósito, é de se notar que a Constituição, em seu artigo 225, caput, nada menciona sobre o vocábulo “cidadão”, de modo que não há porque restringir o instituto da ação popular àqueles que estejam em gozo de direitos políticos, como se vem entendendo, com certa passividade, aliás.
Na realidade, a interpretação das normas constitucionais deve ser concretizada buscando extrair do texto sua máxima efetividade, sob pena de se postergar, indefinidamente, seus fundamentos e objetivos fundamentais firmados, respectivamente, nos artigos 1.º e 3.º de seu texto, a saber: a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais.
A cidadania aqui aludida nada tem a ver com o preenchimento de requisitos hábeis ao exercício dos direitos políticos. Nada tem a ver com prévio alistamento eleitoral, com eventual período de conscrição etc. Guarda, na verdade, pertinência com atuação democrática por parte de todos os sujeitos que compõem o globo social na construção de uma sociedade mais justa e solidária; que tenha, inclusive, como vocação a proteção e tutela do meio ambiente. Democracia não se resume em “votar” e “ser votado”, tampouco “cidadania” se restringe a presença de título de eleitor. Em essência, democracia e cidadania traduzem uma participação efetiva, concreta e palpável do indivíduo – qualquer indivíduo – nos assuntos de interesse social.
De outra parte, verifica-se que não é apenas o artigo 5.º, inciso LXXIII, da Constituição que menciona o vocábulo cidadão. Este também aparece no artigo 58, § 2.º, inciso V, quando trata das Comissões, permanentes e temporárias do Congresso Nacional. Por esse dispositivo, tais Comissões poderão “solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão”. Nem por isso, neste caso, exige-se, a juntada prévia de título de eleitor e/ou equivalente.
No mesmo compasso, o § 2.º, do artigo 74, da Lex Magna, dispõe que “qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União”, sem que, para tal mister, exija-se “prova” de gozo de direitos políticos.
Por derradeiro, quando o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em seu artigo 64, determina que “a Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, promoverão edição popular do texto integral da Constituição, que será posta à disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representativas da comunidade, gratuitamente, de modo que cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil,” seria desarrazoado, senão insano, condicionar-lhe o texto magno à apresentação de título de eleitor.
Não é demais lembrar, outrossim, que há um certo consenso na doutrina no sentido de que as normas constitucionais e infraconstitucionais que asseguram direitos e estabelecem garantias, caso da ação popular, devem receber interpretação extensiva, não restritiva.
Na mesma esteira, não se pode olvidar a denominada interpretação conforme a Constituição, pela qual, segundo Alexandre de Moraes, “no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais”.
Frente a essas ponderações, verifica-se que a interpretação do que se deve entender e compreender pelo vocábulo “cidadão”, contido no artigo 5.º, inciso LXXIII, da CF/88, deve transcender a conceitos arraigados e pré-moldados em nossa sociedade em outras épocas. Afinal, não é a Constituição Federal que deve se ajustar às disposições contidas na Lei n.º 4.717/64, como vem ocorrendo. É justamente o contrário, significa dizer: é a Lei que regula a ação popular que deve ser analisada, interpretada e aplicada de acordo com os parâmetros Constitucionais.
A Constituição Federal é a base, o fundamento, o alicerce e a razão de ser de todas as demais normas jurídicas, as quais lhe devem obediência e conformação. Todo o ordenamento jurídico deve se encontrar em simetria com os postulados previstos na Constituição. Por isso, diz-se que a ordem jurídica constitui-se em um sistema de normas jurídicas escalonadas em diferentes graus. É o sistema piramidal do ordenamento jurídico, onde a Constituição ocupa o vértice.
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, com inspiração nitidamente democrática, representa grande avanço no cenário mundial, onde se tem primado pela busca da democracia, pelo respeito aos Direitos Humanos e pela Tutela do Meio Ambiente. Sua interpretação, pois, deve atender em letra e em espírito, seus postulados.
Vale anotar aqui, por indispensável, as palavras de Luís Roberto Barroso: “A Constituição e as leis, portanto, visam a acudir certas necessidades e devem ser interpretadas no sentido de que melhor atenda à finalidade para a qual foi criada”.
Dessa forma, essa corrente que condiciona a propositura da ação popular que tenha por objeto a tutela do meio ambiente à apresentação de título de eleitor, não encontra respaldo em nosso sistema, exceto por uma interpretação literal (a mais pobre delas) e distorcida, na medida em que sobrepõe a lei infraconstitucional ao Texto Maior. Na realidade, essa postura, por demais restritiva manieta precioso instrumento posto à disposição do “cidadão”, não compreendido aqui aquele dono de um título de eleitor, mas sim aquele que contém em si senso de responsabilidade social para com os assuntos de Estado da sociedade brasileira.
Em conclusão, pode-se dizer que qualquer “pessoa” é parte legítima para a propositura de ação popular que vise anular ato lesivo ao meio ambiente, vez que, com tal iniciativa, estará exercendo exemplarmente sua “cidadania” e cumprindo com um dos deveres constitucionais, qual seja: tutela ambiental.
José Ricardo Alvarez Vianna
é juiz de Direito do Paraná e mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. e-mail: jricardo@sercomtel.com.br.