Legislador ordinário não pode contrariar STF

O guardião máximo da Constituição Federal é, sem sombra de dúvida, o Supremo Tribunal Federal. Cabe a ele, conseqüentemente, interpretar os textos constitucionais e fixar o valor e o sentido de cada uma das suas normas. A interpretação dada pelo STF, por conseguinte, não pode ser contrariada pelo legislador ordinário, isto é, por lei ordinária. Se o STF julga um determinado assunto constitucional de uma maneira, não pode o legislador pela via ordinária alterar o sentido da decisão da Corte Suprema. A interpretação adotada pelo STF não está sujeita a ?referendo? do legislador ordinário.

Tudo que acaba de ser destacado está contido no voto (condutor) do Ministro Sepúlveda Pertence proferido no HC 81.057-SP, onde se discutia a validade (ou não) da Lei 10.628/02, que é conhecida como ?lei FHC?. Como se sabe, essa lei (modificando o art. 84 do CPP) procurou assegurar (juridicamente) duas coisas: (a) a preservação do foro especial por prerrogativa de função mesmo depois de cessada a função pública (por exemplo: Presidente da República, mesmo após terminado seu mandato, continua sendo julgado pelo STF nos seus crimes funcionais); (b) a criação desse foro especial para os casos de improbidade administrativa.

Sucintamente, a origem da polêmica reside no seguinte: o STF editara a Súmula 394, que garantia o foro especial por prerrogativa de função mesmo após cessada a função pública. Essa Súmula vigorou até o ano de 2001, quando então o STF, revisando sua firme jurisprudência precedente, passou a entender o seguinte: cessada a função pública, cessa automaticamente o foro especial por prerrogativa de função. Com base nesse novo entendimento do STF, casos ?famosos? que tramitavam (originariamente) em tribunais foram deslocados para a (e julgados em) primeira instância: caso Nicolau, Maluf, Magri, Zélia Cardoso, Luiz Estevão, etc.

Contrariando o novo posicionamento do STF nessa matéria, o legislador ordinário, em 2002 (numa espécie de reação contra a Corte Suprema), aprovou a Lei 10.628/02, que modificou o art. 84 do CPP. Essa lei continua em vigor e, por ora, é válida. Até que o Supremo Tribunal Federal declare (definitivamente) sua inconstitucionalidade, tem que ser observada. Desse modo, processos criminais e ações de improbidade administrativa devem ser instaurados diretamente nos tribunais, quando o réu ou o acionado goza de foro especial por prerrogativa de função (exemplo: processo criminal ou ação de improbidade contra prefeito, deve ser dirigido diretamente ao Tribunal de Justiça).

Por ora, repita-se, assim deve ser. Mas isso tudo tende a acabar em pouco tempo. Nas Adins interpostas pela Conamp e pela AMB, como já se salientou, o primeiro voto (do Ministro Sepúlveda Pertence) já foi dado. Reconheceu-se a total inconstitucionalidade da lei, basicamente por duas razões: (a) o legislador não pode aprovar nenhuma lei (ordinária) em sentido contrário às decisões do STF em matéria constitucional; (b) a ação de improbidade administrativa tem natureza civil e não existe foro especial por prerrogativa de função nesse âmbito.

Esse voto tem tudo para ser o condutor do julgamento. Dificilmente os demais Ministros da Corte Suprema irão dele se afastar. Com isso, a tendência (firme) é no sentido de que um dia a mencionada lei será definitivamente julgada inconstitucional (e inválida). O único cuidado que deve ser tomado é o de preservar os julgamentos proferidos sob sua vigência. A declaração de (total) inconstitucionalidade da Lei 10.628/02 não pode afetar os julgamentos precedentes nela fundados, tornando-os nulos. Preservado isso, no mais, será absolutamente inquestionável a (possível e previsível) decisão final do STF.

A única maneira de o legislador alterar todo esse panorama consiste na aprovação de uma Emenda Constitucional. Mas mesmo assim, não se pode descartar a possibilidade de se examinar a sua constitucionalidade. Toda decisão do legislador derivado (que vem depois do constituinte) está sujeita à declaração de inconstitucionalidade. Em outras palavras: também uma emenda constitucional pode ser declarada inconstitucional. Por isso, no que diz respeito às ações de improbidade administrativa, dificilmente passará no STF qualquer tipo de adoção de foro especial. Em ações civis isso não existe.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e diretor-presidente da Rede de Ensino IELF-LFG (1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina – Democratização do ensino em favor de todos – Pro Omnis – www.proomnis.com.br)

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