Por que é muito difícil debater (ou decidir sobre) o tema da legalização (ou não) da “maconha” de forma racional? Por causa das nossas emoções e intuições morais (convicções morais, que se transformam facilmente em paixões fundamentalistas, se não controladas) que são geradas pelos nossos condicionamentos culturais.

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Tudo começa com o seguinte: não existe pensamento desconectado das nossas emoções (e intuições morais) (é o que afirma o neurocientista português António R. Damásio, autor do livro O erro de Descartes). Na raiz de tudo estão as emoções (e intuições). Só depois é que vêm o pensamento, a opinião e a decisão (sobre um determinado assunto).

Se quisermos discutir racionalmente (e decidir sobre) um assunto sobrecarregado de emoções (e paixões), temos que trabalhar (coisa difícil, mas que deve sempre ser tentada) o chamado “controle “top-down'” (controle da sua opinião e da discussão pelo neocórtex, ou seja, pelo cérebro racional), que é a única “ferramenta” (humana) capaz de comandar as nossas inclinações, intuições, emoções e apetites naturais(1).

No debate (sobre a legalização da maconha) promovido no dia 21/10/10 pela Folha de S. Paulo vimos muita emoção e pouco “controle top-down” (controle das emoções e intuições).

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Muita intuição moral e pouca racionalidade. Muita paixão encobridora da racionalização. Além disso, muita afirmação é feita sem nenhuma comprovação estatística (“chutometria”). Marcos Susskink, por exemplo, disse: “na sua experiência, o álcool é menos nocivo do que a maconha” (estatisticamente falando a nicotina gera 32% de dependência, contra 15% do álcool e 9% da maconha Folha de S. Paulo de 23/10/10, p. A7).

Um dos poucos pontos consensuais foi o seguinte: “É contraproducente e cruel punir usuários de maconha como se fossem criminosos, e falta uma distinção mais clara entre traficantes e simples consumidores da erva na legislação do país” (Folha de S. Paulo de 23/10/10, p. A7).

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No mundo científico o consenso sobre esses pontos é bastante sólido. Ocorre que o populismo penal e o autoritarismo jurídico não ouvem a ciência. Seguem suas emoções e intuições morais.

O legislador brasileiro (Lei 11.343/2006), num dos seus raros momentos de controle racional do cérebro, fez progresso ao impedir (de forma absoluta) a pena de prisão para o usuário de droga. Sinalizou que o usuário deve ser retirado do campo do direito penal, mas ficou (embasbacado) no meio do caminho.

Os atores jurídicos (intérpretes e juízes do STF, sobretudo) não conseguiram controlar suas emoções e intuições morais, seus preconceitos e pré-juízos, formados pelos seus condicionamentos culturais.

Deixaram atuar o piloto automático das suas preferências (morais) internas preestabelecidas e concluíram que o usuário é um “criminoso”, um “tóxico-delinquente” (RE 430.105-RJ).

O autoritarismo punitivista continua mais presente que nunca nas mentes dos nossos (majoritários) atores jurídicos. A falta de uma clara distinção entre o usuário e o traficante foi uma outra falha legislativa deplorável. O legislador só fixou critérios gerais (de distinção).

Com isso deixou a definição (em cada caso concreto) por conta dos atores jurídicos (intérpretes, policiais, Ministério Público e juízes), que persistem (majoritariamente) atrelados às suas clássicas emoções e intuições punitivistas vingativas (sem ouvir a ciência).

Por força da atávica (e comprovada) seletividade preconceituosa do sistema penal (nesse sentido são as conclusões arrebatadoras das teorias do labelling approach), claro que “sobra” com mais facilidade para os pobres a etiqueta de traficante. In dubio pro traficus! O tratamento jurídico dado (no Brasil) a quem tem posses, status, fama etc. é diferenciado.

Um pobre surpreendido com 10 papelotes de maconha, com certe,za, será tido como traficante. Se se trata de alguém que é tratado de forma privilegiada a conclusão é bem diferente.

A distribuição da dor e do sofrimento é feita, na prática, de forma totalmente desigual. Daí a necessidade de o legislador corrigir essa falha legislativa e procurar definir, com critério, quem é o usuário e quem é o traficante.

No exercício da nossa cidadania temos que lutar por novas mudanças na lei e reivindicar debates mais objetivos, sobretudo quando queremos fixar políticas públicas sobre um determinado assunto.

O problema é que em todo debate que envolve questões morais as emoções (paixões) normalmente acabam falando mais alto e nos perdemos em polêmicas inférteis e intermináveis.

Deveríamos então estar prestando atenção ao que dizia Jorge Luis Borges (argentino, poeta e escritor): “Apaixonar-se é criar uma religião que tem um deus falível”. Ou ao que proclamava Cyril Connolly (inglês, editor e crítico): “O homem que é mestre de suas paixões é escravo da razão”.

Nota:

(1) Cf. SCHWARTSMAN, Hélio, Folha de S. Paulo de 23/10/10., p. A7.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Blog: www.blogdolfg.com.br.