A juscademia padece de duas graves, interligadas e contagiosas características: o processo ?seletivo? e a valorização dos antepassados. Fazer tal crítica é necessário, não para desmerecê-la, já que seu papel é fundamental e inegável, porém para fazê-la repensar suas atitudes e seu verdadeiro lugar na tradição histórica da jusantropologia.
Não é de hoje que a jusacademia, ao menos aos olhos dos que a desejam exercitar, é excludente e discriminatória. Parece que são poucos, os mais bem nascidos (pela faculdade onde se graduam), ou os mais bem ?escolhidos? (por professores) que podem fazer parte da plêiade que a compõe. Desde cedo o estudante parece ser selecionado, como um futuro jusacadêmico, ou, então, quando muito após a graduação, numa espécie de preferência simbólica, que não condiz necessariamente com a capacidade de cada um, mas com razões ?extraterrenas?, que o tornam o ?preferido?. Alguns serão ?jusacadêmicos?, outros serão ?práticos? (advogados, juízes, promotores, procuradores, etc.)
Mal não haveria, certamente, se as escolhas se dessem por um processo justo e transparente, de méritos concretos e objetivos, e cuja oportunidade fosse dada a todos. Contudo, a obscuridade parece ser a marca, apesar de algumas exceções. Com isso, um grande número de pessoas acaba sendo refutado, e sobre elas lhes cai o selo de ?não jusacadêmico?, destinado ao ?trabalho? (que outrora foi apenas ofício dos ?escravos?) à ?praticagem? ou ao estudo marginal.
Assim, numa forma de antologia humana, os ?eleitos? passam a gozar da imunidade de ?jusacademico?, que, se talvez não lhes renda mais a prisão especial, ao menos lhe outorga, iuris tantum, a presunção de ?sabedores? do direito. Assim, ser o ?homo jusademicus? é colocar-se titularmente ?sobre os homens?, e com suas sentenças oraculares, muitas vezes sem qualquer propriedade intelectual (apenas porque ?escolhido?), faz-se sobranceiro, a formar opiniões e a desdenhar os que não o são. Tal como os romanos se dispunham no Coliseu, os juscadêmicos são os que se sentam mais próximos do rei, e mais fidedignos de contar o espetáculo, porque mais perto da arena. Distante, e nas arquibancadas mais altas estão os ?preteridos?, afônicos, que não merecem atenção, ou, então, não conseguem nunca entrar na juscademia, que, impassível, não cede aos seus apelos.
A esse mal, certamente vem atrelar-se e decorrer um outro, que é a veneração dos juscadêmicos antepassados, os também outrora ?eleitos?. Sem se preocupar com a real contribuição por eles dada, valorizam-se antes os nomes do que as idéias, antes as imagens do que suas condutas. Assim, numa espécie de beatificação, a ?autoridade acadêmica? inclui o antepassado, muitas vezes sem grandes virtudes, no rol dos ?bem-aventurados?, não por sua obra intelectual, mas por ter sido um dia ?escolhido?.
Assim, vagueiam sobre os bancos escolares os ?grandes?, aqueles que efetivamente contribuíram, e para os quais não há que se render homenagens, pois jamais deles poderemos esquecer, como nem dois milênios nos fizerem esquecer de Sócrates ou Aristóteles. São eles fundadores, e não ídolos! Porém, vagueiam também os ?eleitos?, os quais necessariamente devem ser citados, embora não se saiba bem ao certo como fazê-lo, apenas para que confira ao texto um grau de ?sabedoria?.
A juscademia se torna, portanto, o lugar do culto e da reverência das pessoas e não das idéias, o lugar da exclusão, da privação, numa sacralização do rito de escolha e de deferência aos antepassados. E talvez a razão disso seja em parte a herança herdada dos romanos pela recepção medieval do direito latino, que a elite brasileira imperial soube muito bem trazê-la a seu tempo para o país.
Foram os romanos que inventaram o instituto jurídico da propriedade, ao menos nos moldes como o conhecemos (antes da expansão e queda do seu império). E nos fizeram desejar, com as devidas diferenças históricas, a segurança do título e o apego ao imóvel. Servindo a separar romanos e bárbaros, o fundamento de tudo estava antes no elemento religioso do que nos seus efeitos econômicos, à medida que sobre a terra, além dos vivos, vagavam também os mortos.
Como há muito tempo a historiografia francesa ressaltou, cada família tinha seus próprios deuses, seus próprios antepassados, outrora chamados de ?lares? ou ?manes?, como forma de mais profunda religiosidade diante do fogo sagrado. Tão forte são seus vestígios, que até hoje falamos em animus manendi para fixar nosso domicílio. Assim, a adoração mística dentro da casa, donde viriam nascer também as relações de parentesco, vinculava espaço e religião, pois conviviam vivos e mortos nos mesmos cômodos, nas mesmas ?terras familiares?.
Em cada parte, havia um ancestral enterrado, e para o qual se passava horas cultuando sua alma. Cada túmulo era um laço sereno da familiaridade, e vinculava indivíduo por indivíduo ao ?solo sagrado?, divinizando a terra e a sua história. Portanto, foi o legado romano, e certamente não o grego (muito longe disso), que nos fez valorizar não somente a propriedade, mas a divindade do solo e a necessidade de se adorarem os antepassados.
Assim, a jusacademia que chegou até nós, que não foi a grega, mas a romana, vinculou-se também à idéia de propriedade e da valorização do sagrado da casa. Não é à toa, portanto, que adoramos os jusacademicos antepassados, não tanto por suas teorias, como bem gosta de lembrar Foucault, mas por suas imagens, numa espécie de santificação, para as quais se devem render homenagens, como forma de legimitidade.
É o vínculo com os jusacademicos ancentrais que dá o tom de ser ?discípulo?, de ser ?designado? e os bancos acadêmicos o tom de ser ?familiar?, como cumpria entre os romanos a função do túmulo. Isso, sem dúvida, é um grande problema. Não se valorizam, na grande maioria das vezes, as robustas teorias, as grandes construções de raciocínios, as vivas abstrações, ou mesmo os jusacadêmicos pelo que foram, por suas condutas, por seu éthos. Valorizam-se, sim, aqueles que foram ?escolhidos? pela academia, por atributos outros que não a competência.
Assim, o grande equívoco da juscademia é discriminar aqueles que dela não fazem parte, ou aqueles que não ?adoram? os ?sagrados? juscadêmicos ancestrais. Por isso, não são poucas as vezes que a juscademia é prepotente, e tende a excluir aqueles que foram para carreiras técnicas muito cedo ou aqueles que não assentiram com seu próprio ?ritualismo?.
É preciso saber disso tudo, para tentar modificá-la, para fazer com que seus ?intelectuais? abandonem suas vaidades e respeitem aqueles que não lhe são ?pares?, para que valorizem idéias e não imagens, grandes construções teóricas e não símbolos! É preciso ter respeito àqueles que um dia contribuíram, mas não idolatria! Se os romanos não acreditavam em céu, preferindo fazer vagarem os ancestrais, optemos pelo oposto, e deixemos que não os nomes, mas suas teorias permaneçam vivas e contribuindo para o desenvolvimento da juscademia!
Guilherme Roman Borges é advogado, doutorando e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestre em Sociologia do Direito e bacharel na UFPR, bolsista doutoral na Faculdade de Filosofia da Universidade de Patras-Grécia (Sholé Anthropístikon kai Koinonikon Epistémon Tméma Philosophías Panepstímio Pátron Elleniké Demokratía); professor de Economia e Direito Econômico na Universidade Positivo.