"Não somos cavalheiros…somos peronistas!". A frase – de John William Cooke, que apesar do nome irlandês, foi um político argentino de grande influência nas duas primeiras décadas de vida do Partido Justicialista (Peronista) – sintetiza a tradição de jogar duro, sem sutilezas, que o general Juan Domingo Perón desenvolveu com esmero.

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Esse peculiar modus operandi – antes usado apenas na política interna – foi exercido intensamente nas últimas duas semanas contra o principal sócio estratégico da Argentina, o Brasil, pelo presidente Néstor Kirchner, um peronista.

Em ostensiva demonstração de "peronismo explícito", Kirchner bocejou durante o discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na cúpula de países árabes e sul-americanos e atendeu o celular. Depois, não aplaudiu o discurso de Lula. No encerramento, os países declararam apoio à Argentina para a reivindicação das Ilhas Malvinas. O principal interessado, Kirchner, não estava presente. Havia partido no dia anterior.

Estes gestos de comportamento pessoal foram acompanhados por posições duras na relação bilateral. Publicamente, Kirchner e seus ministros indicaram ao governo Lula que "endureceriam" sua postura com o Brasil.

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Oficialmente, Kirchner dispara sua artilharia de medidas protecionistas contra a entrada de produtos brasileiros para salvar a indústria nacional da extinção. No entanto, juntando todos os setores argentinos que reclamam atualmente (ou reclamaram nos últimos oito anos) da suposta "invasão" de produtos "Made in Brazil" (calçados, têxteis, eletrodomésticos, plásticos, frangos, suínos, papel, máquinas agrícolas e madeira, entre outros) não se alcança 4% do intenso comércio bilateral que os dois países desfrutam desde o início dos anos 90.

Mas, por trás da estratégia de mostrar-se "durão" com o país vizinho, mais do que defender um punhado de decadentes setores empresariais reunidos sob a égide da União Industrial Argentina (UIA), está uma desesperada corrida contra o relógio para vencer as eleições parlamentares de outubro. Atacar o Brasil (além do FMI e as empresas privatizadas), afirmam os analistas, é uma forma de garantir votos dentro dos setores mais nacionalistas do eleitorado.

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"Essas eleições são mais do que decisivas. Elas vão plebiscitar o governo Kirchner. Na verdade, estas serão as eleições que ele nunca teve!"

A frase foi pronunciada à Agência Estado em Montevidéu há duas semanas por um homem do círculo mais íntimo de "El Pingüino". Ele referia-se à forma como Kirchner chegou ao poder com apenas 22% dos votos.

Em outubro, os argentinos irão às urnas para renovar um terço do Senado e metade da Câmara de Deputados, além da totalidade das assembléias legislativas. Isso definirá o mapa do poder para os dois anos restantes de governo. Se Kirchner conseguir uma votação majoritária, poderá instalar-se como candidato indiscutível à reeleição presidencial em 2007. Mas, se o desempenho não for impactante, Kirchner, para almejar uma segunda presidência, terá que enfrentar a possibilidade de que surjam fortes nomes para sucedê-lo, entre eles, seu próprio Ministro da Economia, Roberto Lavagna, o ex-presidente Eduardo Duhalde ou a esposa deste, Hilda ‘Chiche’ de Duhalde.

A analista de opinião pública Graciela Römer disse à AE que existe uma imagem positiva do Brasil entre a maioria dos argentinos. Segundo uma pesquisa que realizada há poucos dias, 57% dos entrevistados afirmam que, levando em conta as recentes disputas entre o Brasil e a Argentina por questões políticas e comerciais "apesar de tudo, os dois países precisam um do outro e poderiam ganhar muito se cooperam e associam-se entre si". Um grupo inferior, de 34%, considerou que "o Brasil sempre tenta tirar vantagem, e por isso, a Argentina deveria brecá-lo para proteger seus interesses".

No entanto, Römer explica que o eleitorado aprecia que o presidente Kirchner "coloque alguns limites" ao sócio do Mercosul. "Briga ou consenso? Existe um comportamento ambivalente na opinião pública. Os argentinos saem de uma crise muito profunda, e a ferida narcisista ainda não fechou. As pessoas querem que o governo se mostre firme diante dos grandes e poderosos, mas, ao mesmo tempo, não querem briga. Elas querem que Kirchner coloque limites ao ‘expansionismo’ brasileiro. Mas, ao mesmo tempo, não querem que rompa com o Brasil."

Outros presidentes também atacaram o Brasil durante as campanhas de eleições parlamentares ou presidenciais. Assim foi em 1997 e 1999 com o ex-presidente Carlos Menem. Nas eleições parlamentares de 2001 foi a vez do impopular presidente Fernando De la Rúa. Só em 2003 há uma quebra dessa "tradição", quando, nas eleições presidenciais, Kirchner precisou da bênção de Lula. O presidente brasileiro, segundo pesquisas da época, tinha mais popularidade entre os argentinos do que os próprios políticos nativos.