Juristas que foram poetas

Em minha atividade jurisdicional, era comum valer-me dos ensinamentos dos mestres do direito para fundamentação dos atos decisórios.

Tinha, e conservo ainda, um certo encantamento por distinguido jurista alagoano, que considero um dos maiores, pela profundeza de suas obras, uma das quais, Tratado de Direito Privado, em sessenta alentados volumes, sempre recorria.

Pontes de Miranda, na realidade, era meu mestre.

Ao seu lado, outro poderia lembrar, a exemplo de José Frederico Marques, Seabra Fagundes e Miguel Reale, para só mencionar estes.

O recente passamento deste último muito me chocou, ainda porque, quinzenalmente, acompanhava suas eruditas crônicas pelo vetusto O Estado de S. Paulo.

Presidindo o Centro de Letras do Paraná, tradicional entidade cultural fundada em 19 de dezembro de 1912, constatei, através da Academia Paranaense da Poesia, que lá se reúne, que Miguel Reale fora sensível poeta, dando a lume a prodigiosa obra Sonetos da Verdade, que muito me tocou.

Ocorreu-me, então, que Pontes de Miranda também versejava, ele, que além de produções jurídicas, filosofia científica e sociológicas, incursionou pela literatura propriamente dita.

Recorri, então, ao seu livro Obras Literárias (Prosa e Poesia), em cuja ?orelha? é explicitado: ?Pontes de Miranda é um nome a serviço da inteligência e da cultura, a que tem servido através de extensa e categorizada bibliografia em todos aqueles departamentos da ciência e da arte?.

E, mais adiante: ?Mas essa inata caracterização da personalidade do autor, ou essa maior sedução pelo Direito, não fizeram calar em Pontes de Miranda os apelos da sensibilidade artística ou literária, ontem e hoje manifestada na prosa e na poesia?.

No que concerne a poesia, é registado, ?Em verdade, eis um poeta em que a substância, o conteúdo, ganha real importância, revelando-nos uma natureza de artista, uma sensibilidade capaz de levar-nos não só ao mundo particular do ser como ao próprio coração das idéias em floração?.

Seus poemas, ora no vernáculo, ora em francês e inglês, ensejam apreciação, como o primeiro de uma série nominado Inscrições da Estela Interior

Lâmpada

?A minha vida é um longo amor ininterrupto,

uma lâmpada acesa

movenda,

uma lâmpada acesa no meu salão interior,

e a mão branca,

a mão sutil,

a mão fina,

a mão abstrata

da Idéia

estende sobre a luz a seda roxa, concentrante

e espessa,

para que eu possa,

nas semi-sombras,

meditar…?

De seu turno, Miguel Reale, como sonetistas, é prodigioso.

Na contracapa de Sonetos da Verdade é bem assinalado, ?Miguel Reale é nome bastante conhecido pelos que se ocupam de Filosofia. Livros seus, como Filosofia do Direito (com várias edições e traduções) e Verdade e conjetura (publicado pela Nova Fronteira em 1983, foram elogiados pela crítica e consolidaram sua posição como filósofo. E o poeta que existe em todo filósofo revela-se agora nestes Sonetos da verdade: ele acredita que a poesia é também uma forma de conhecimento tão legítima quanto a Filosofia ou a ciência, mais próxima da primeira do que da segunda. ?A palavra oculta no âmago do seu sentido a raiz intencional que lhe deu o ser, pondo-a como eidos e como imagem. Donde a impossibilidade de afirmar-se que a poesia é feita com palavras, e a prosa, com idéias, ?diz Miguel Reale?.

Aliás, na apresentação, o autor revela: ?Procurei, nos primeiros poemas, achegar-me às coisas e à sua essência eidética, esperançoso de captar-lhes também o halo imaginoso que a circunda, a força estética que lhes dá plenitude nos caminhos do Ser. Se não logrei vencer tão pretensioso desafio, valeu-me a alegria da tentativa, parecendo-me válido dar a conhecer aos amigos, o que para mim foi uma reconfortante experiência, as vezes ingênua, outras de vago simbolismo, mas sempre inspirada pelo ?lirismo lúcido?, que mestre Cassiano Ricardo generosamente descobriu em meus versos?.

Dele transcrevo, para enlevo dos que lerem,

A Procura

?Tanto cuidei das coisas deste mundo

buscando para os outros um caminho

que me sinto perplexo e sem rumo

à espera de uma curva e de um ninho.

Em que pedra encontrar minha cabeça

na ilusão do travesseiro fofo?

Feliz seria nunca mais ter pressa

fitando o perto e o longe do horizonte!

Talvez o velejar das tentativas,

buscando em vão um porto, seja o sino

que esperava escutar em meu destino,

Mas que me vale a rosa azul dos ventos

nessa aventura pelo mundo afora

se minha sina só a percebo agora??

Miguel Reale, afora suas inúmeras obras jurídicas e filosóficas, somadas às traduções, poesias, artigos e crônicas, legou-nos, ainda, um talentoso filho, também jurista emérito e que já foi ministro da Justiça, prestes a sucedê-lo em plena Academia Paulista de Letras.

Rememorando Pontes de Miranda e Miguel Reale, rendo-lhes o preito de minha, aliás, de nossa eterna admiração!

Luís Renato Pedroso é desembargador  jubilado, presidente do Centro de Letras do Paraná, vice-presidente do Movimento Pró-Paraná e ex-presidente do Tribunal de Justiça.

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