Juristas pianistas: O corporativismo das classes jurídicas e o ?favor? na vida jusideológica brasileira

O jurista brasileiro, nascido no séc. XIX ao embalo das Valsas de Viena, quando nosso arcadismo cedia suas luxúrias ao romantismo de Magalhães, acostumou-se desde muito cedo, desde as primeiras discussões do Projeto Antonio Carlos, que daria vez à construção do Estado Nacional pela outorga da carta de D. Pedro, aos comícios, às festas e aos discursos cívicos. Foi, doravante, um jurista que se habituou, numa desfaçatez própria, mas numa imensa alegria, a dançar na terra brasileira ao som dos lundus africanos, das modinhas de Rafael Coelho ou mesmo das ?músicas de barbeiros?.

Nasceu, assim, ritmado, à frente do imponente, simbólico e recém-importado piano de calda, tendo como pano de fundo uma arquitetura intelectual costurada pelas elites regionais do café, pela burocracia do reino, e pelas faculdades de direito de Olinda e do Vale do Paraíba. Melódico, pôs-se desde cedo a se harmonizar com as estruturas de poder e com a administração do Estado Brasileiro. Parecia, com seu tino e suas batutas, na busca pela coesão ideológica da unidade nacional, ter imensa capacidade de reger seus jurisdicionados, e, à medida que a justiça saía da reclusão privada das fazendas e seguia em direção à publicidade dos juízes itinerantes e dos juízes de paz, de colocarem-se paulatinamente juntos dos postos mais altos do Estado, e, por conseqüência, deles herdarem todos os seus princípios e suas feições.

Infelizmente, os juristas herdaram desde então, dos espaços organizados pelo poder público, grandes progressos e imensas recompensas legislativas, sobretudo na delimitação do espaço da justiça e no fim do livre arbítrio do período colonial. Entretanto, dele se fizeram também legítimos, necessários e testamentários do patronato, do compadrio e do clientelismo, tão bem esmiuçado por Faoro, que informaram e conformam até os dias de hoje, ainda que de maneira velada, o Estado Federado brasileiro.

Deixaram-se se levar, como não contemporizam diferentemente, pelos anseios de divulgar a missão paternalista e as práticas familísticas da burocracia imperial. Acomodaram-se, no dizer de Roberto Schwarz, irresponsavelmente ao velho e inerente princípio do favor da vida jusideológica brasileira. Do controle do eleitorado, das fraudes e do consórcio da rede estatal, os juristas levaram para seu universo restrito o favor como princípio fundamental. Do mesmo modo como os homens livres pobres não tinham outro acesso à vida social e aos seus bens na sociedade escravista, senão por meio do favor de um latifundiário em troca da prestação de pequenos serviços, os juristas também, considerando-se compadres, começaram a trocar favores.

Supostamente como iguais, os juristas, tal como se sentiam os homens livres aos latifundiários, estabeleceram entre si práticas de clientela, de forma a ocultar dominações, arbítrios e clandestinidades. A troca de serviços e, sobretudo, de benefícios, fez-se então uma triste realidade, e se compôs do que tanto lhe faltava, a legitimidade do poder pela presumida amizade. Se a burocracia do estado imperial distribuía cargos públicos como recompensa pelos favores prestados, segundo Buarque de Holanda, a burocracia jurídica distribuía influências, agilidades processuais, retardamentos administrativos, garantias, privilégios, prerrogativas, imunidades, enfim, cordialidade e compadrio.

Estima e auto-estima, numa fluidez dilacerante, passaram a determinar as relações entre os juristas, ora juízes, delegados, procuradores do rei, ora professores, advogados, amigos do rei. Num parentesco coletivo, numa grande família, malandrices e falsificações passaram a ser encobertas entre os juristas, e, especialmente, entre os juristas e cada uma de suas respectivas classes. As classes, como bons patrões, agraciadas pelo privilégio administrativo que tiveram de controlar e encobrir seus próprios empregados, passaram a deles se utilizarem, mas também deles se tornarem reféns.

Desde então, o que se percebe, à imagem desta camaradagem estonteante, é que inúmeras práticas imorais são constantemente escondidas entre os próprios juristas, e, no pior das vezes, entre os juristas e suas classes, cujos órgãos de controle da probidade não passam de simples feixes administrativos de competências destinados a lustrar graças e simpatias. Tornam-se, assim, tribunais de ética, órgãos administrativos disciplinares, corregedorias, simples estruturas burocráticas incapazes de coibir alguma prática, vez que o favor lhes imputou seu destino desde a origem.

O Brasil jurídico, assim, desde muito cedo, e inconseqüentemente até hoje, está cada vez mais insustentável. Longe da probidade, o que não significa o elogio da punição desvairada ou irresponsável, as classes jurídicas nada fazem diante de tantos despropósitos, tantos desabusos, tanta desmedida.

Quantos não são os casos de juristas que se matam em audiência, cujos desfechos dos processos não caem na prescrição advinda das tantas prevaricações. Quantos não são os juristas que se torturam em seus escritórios e cuja punição se reduz no distanciamento provisório e momentâneo da carreira. Quantos não são aqueles que queimam processos em praça pública aos brados proprietários da coisa de todas, e cujas conseqüências se traduzem num simples afastamento indireto de seu ofício. Quantos não são, enfim, aqueles que sem razão abandonam suas cátedras ou nelas pronunciam tantas bobagens, tantas discriminações, tanta selvageria, tantas confissões típicas, antijurídicas e culpáveis, e cujos efeitos se reduzem numa aposentadoria.

Essa é, lamentavelmente, a realidade histórica e atual da vida jurídica brasileira. Seus juristas, seguindo suas tradições fanfarronas e dançantes, parecem seguir os passos do clássico episódio político-nacional de 1985, quando os deputados que, no Congresso Nacional votavam por colegas ausentes do plenário, ou pior, da própria casa (quando o voto era processado através de um painel eletrônico, acionado de cada assento por uma tecla), nada sofreram, em razão do corporativismo, saindo impunes e considerados, inclusive, inocentes pela Câmara, assim chamados pela imprensa, por teclarem à toa, são, então, juristas pianistas, que tornam ainda mais a desmoralizar a classe.

São juristas sem rostos, no espelho de Roberto da Matta, marcados pela ausência, pela fuga, pelo distanciamento, pelo isolamento ético. Tendem, dessa maneira, naturalmente, a serem juristas sem compromisso, que não sabem distinguir seu real lugar no mundo, nem tampouco sabem vivificar suas vidas interiores. Por isso, o mundo jurídico é um espaço do subterfúgio, das promessas sem cumprimento, das escapatórias desonradas, dos pactos quebrados, das escusas sem cabimento, do brilho próprio acima de tudo, e, cujas classes, que tudo lhes devem e tudo lhes confortam, são seus grandes latifundiários.

Todavia, cuidemos apenas para que o nosso mundo jurídico não se transforme num mundo político, com todas as suas moléstias, com todas as suas veleidades, com ainda mais descrédito; para que seu cenário não se transforme na tela trágica dos retirantes de Portinari ou na fotografia triste de um filme de Almodóvar, para, enfim, que não tenhamos que ?dançar? por tanto tempo, talvez sem volta, ao embalo do tiritar inseguro e perigoso dos dedos destes juristas pianistas!

Guilherme Roman Borges é advogado, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP, mestre em Sociologia do Direito na UFPR e professor de Economia e Direito Econômico no Unicenp.

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo