Juristas como Don Quijote de la Mancha: A ficção jurídica como discurso constitutivo da realidade

g51.jpgO mundo contemporâneo, às vésperas de novas boas, experimenta um modelo de homem totalmente distinto do que outrora já se ousou vivenciar. As complexidades, as multiplicidades, as novas ordens de relações sociais, os novos patrimônios imateriais, os sacrifícios da técnica, os novos modos de cognição, os valores profusos, levam os homens aos seus duplos, aos seus fragmentos, a um desdobramento, que se anula e se reconstrói na clássica objetividade há tanto destacada pelos positivistas das ciências humanas.

Contudo, essa dobra da subjetividade, que no século burguês foi capaz de colocar o homem como objeto do vetor epistemológico, dando-lhe a unidade necessária que a crítica kantiana tanto desejara, traz atualmente à superfície os horrores de um homem dilacerado e despistado na razão de sua modernidade, ao mesmo tempo em que leva os discursos a sentirem a necessidade de se experimentar em seus extremos, querendo transbordar os seus limites e constituir novas possibilidades de vida.

Vivem-se tempos (que no Brasil hão de ser vistos ainda mais com atentos olhos) claramente marcados por um universo cuja complexidade, no mesmo compasso de seus bons augúrios, torna instáveis as virtudes e os valores, e traz uma perplexa estranheza para os indivíduos, que têm na imagem, na idolatria e no acúmulo de capital econômico, no bem dizer de Bourdieu, o sentido de suas existências. A insegurança dos princípios, a ausência de perspectivas éticas, a irresponsabilidade na sua Lebensführung, e o caráter driblado pelo consumo e pela frivolidade, marcam esse homem de hoje, e definem-lhe um conteúdo depravado, flexível, insensato, sem personalidade, poroso, com uma atroz miscibilidade aos discursos prontos e instrumentais e uma tendência desabusada para o brilho de suas arestas ao invés de seu conteúdo.

Podemos pensar numa série de novas possibilidades, mas duas parecem que se investigadas à exaustão podem trazer indícios de bons frutos: um novo modo discursivo, uma nova estratégia de pensamento, hábil a buscar um discurso de constituição, e na medida de sua ficção, seja capaz de constituir realidades, interpelar os homens e suas atitudes, e devolver-lhes um sentido de vinculação com o mundo material que talvez nunca tenha conseguido se efetivar; de outro lado, um "novo" modelo de homem, redescoberto num tempo passado, que talvez efetivamente nunca tenha existido, mas que é capaz de viver não de utopias, mas de ficção, de uma ficção constitutiva.

A saída discursiva pode ser sugerida a partir de um discurso transgressional, que à custa de Bataille e Blanchot, permita-se chocar, romper, negar, desalojar a razão jurídica, arar os sentidos tradicionais, fazer-fugir, fustigar a solidez dos discursos de conservação, e recuperar da experiência do fora uma nova capacidade de resistência, um "não" constitutivo no instante em que funde novamente a realidade. Um discurso, que na extensão de sua ficção, tal el quehacer cerimonioso e elegante da literatura, seja um discurso que imprima o mundo material, que não construa, mas constitua, que não determine, mas ensine, dando-lhe novos sentidos, novas oportunidades, um discurso pragmático, ordinariamente sustentado pelos homens. Nesse sentido, há também de ser o discurso jurídico: o transbordar de seus limites, o extravasar de suas constrições à medida que se constitua como discurso jurídico de transgressão e opere na prática novas visibilidades, para além de um mero, embora indispensável, discurso de cunho social e humanitário.

Mas de nada adianta um desdobrar do discurso, querendo romper com o positivismo ou mesmo com os discursos de teorias críticas se não se souber encontrar um novo homem, um novo jurista, para bem levar a cabo as palavras enlanguescidas do "poetinha" (de nada adianta, se nessa selva oscura e desvairada não se souber achar a grande amada para viver um grande amor!).

Esse novo homem, ou quisera o Übermensch nietzschiano, há de ser um homem que busque novos valores, que procure resgatar na medida de sua multiplicidade a unidade de seu caráter e a envergadura de sua moralidade pública e privada. Com esse homem, cuja corrupção fique presa na abóbodas do Congresso e nas vergonhas dos fóruns, há de nascer um novo jurista, um jurista, que na prudência greco-romana, seja novamente virtuoso, reto, uno, um "jurista curador de si", e ao passo que cuide de si mesmo, de seu ethos, cuide dos outros e os faça ser à sua corajosa imagem e respeitada semelhança. Um jurista imensamente apegado aos seus bons predicados antes do que aos seus murmúrios, um jurista imaginativo e sonhador (mas não inocente, para que não perca a consecução de seus desígnios), preocupado em recuperar um tempo perdido, que tal a escritura de Cervantes, talvez seja apenas ficção e nunca tenha efetivamente existido, mas que ao correr da linha, fazendo a letra ser a transgressão do ponto (letra gr. stoicheîon como steícho  ?avançar em linha?) e das fantasias de Alonso Quijano, realize o mito e transforme a ficção em realidade, a ficção em história viva, no dizer de Vargas Llosa.

Alonso Quijano, cujos costumes lhe renderam o nome de el Bueno, nas palavras do próprio Caballero de la Triste Figura, um fidalgo cinqüentão, que ao lado do baixo e barrigudo campesino Sancho Panza, correu sua "pátria", as aldeias, as comunidades e os povos espanhóis em busca de resgatar o tempo eclipsado dos caballeros andantes, os quais percorriam o mundo ajudando aos fracos, resolvendo problemas e procurando fazer a justiça e a eqüidade reinar entre os homens. Ao ler os romances das cavalarias antigas, Quijano paulatinamente foi se transformando, tais as silhuetas de seus heróis Amadis de Gaula, Tirante el Blanco e Tristán de Leonís, em Don Quijote de la Mancha, trazendo a nostalgia de um mundo marcado pela coragem, pela perícia dos homens, pelas proezas e pelos códigos de honra individual.

A ficção da loucura de Don Quijote, como assim era vista por muitos, sua razão de ser, seu sentido foi se infiltrando gradativamente na realidade, modelando condutas e transformando visões de mundo. Seus delírios, sua visão cavalheiresca do mundo e suas andanças sem destino (o destino de seus sonhos) mudavam tudo ao seu redor, contaminando o vivido, e fazendo o que estava em volta mudar de figura. Até mesmo Sancho Panza, que nos primeiros momentos da estória era pragmático e materialista, vai amoldando sua imagem à magreza de Quijote, cedendo-se aos encantos de honra, ordem, princípios e virtudes dos cavalheiros. Tanto que na triste hora da morte de seu amigo, quando esse deitado já se ia, Sancho Panza choroso pede a Don Quijote que se levante, para que ambos, vestidos de pastores, possam interpretar na vida real essa ficção pastorial, talvez a última fantasia de don Quijote. Tinha ele, como quisera Llosa: hambre de irrealidad.

Mas essa fome de fantasia e de liberdade, em busca de homens e discursos de virtude e bondade, fez Don Quijote acreditar, na malícia de seus desvarios, numa Idade de Ouro, paradisíaca, em cuja virtude e bondade viveriam os homens. Como um caballero andante, quisera el Bueno, na sua generosa vocação, lançar-se corajosamente pelos caminhos e buscar uma forma de remédio para a insegurança e a selvageria da sociedade que vivia. Seu amor ao discurso, não por sua vaidade, mas por um ser autônomo da linguagem, fizeram-no construir aos seus olhos um patriotismo de memória e sentido para os seus próximos.

Os gestos quixotescos, rebeldes, transgressores e justiceiros, foram, nessa medida, o romance ficcional de seu tempo, que mudou sua realidade, uma forma de discurso constitutivo, e, mesmo que não quisesse mais ser no fim da vida o Don Quijote, em parte frustrado em seus anseios, querendo apenas o antigo Alonso Quijano, seu testamenteiro e seu escudeiro e todos que ali estavam não lhe permitiram que voltasse novamente a ser apenas o fidalgo, pois como lhe disseram, naquele momento já era impossível, pois o mundo sonhado e buscado pelas ações de Don Quijote não era mais o mesmo de antanho.

Por isso, que este homem influencie os juristas; que se resgatem os juristas greco-romanos, juristas andantes, que à imagem da ficção de Alonso Quijano, sejam juristas como Don Quijote, capazes de fazer o seu discurso, transgressional para o seu momento, um novo discurso constitutivo da realidade à medida de sua fantasia e de sua ficção; que se resgatem os juristas dos códigos de honra e das virtudes, que sejam capazes de fazer o direito, como seu fiel campesino, transformar-se em seu estatuto de conservação e de domínio, vivendo tempos de honra, como um sonho realizado, como uma literatura viva. Porque, então, quando novamente aparecerem juristas como Don Quijote, estaremos certos, que na ficcionalização da realidade e nos mistérios das fantasias, o mundo jurídico e seus homens estarão mudados, e talvez nós não acreditemos realmente na mudança, mas teremos que concordar que o tempo de hoje, e todos os seus percalços não mais serão os mesmos, porque modificados pela magia jurisquixotesca do dia-a-dia.    

Guilherme Roman Borges é advogado, mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP, mestre em Sociologia do Direito na UFPR e professor de Ética e Direito Econômico no Unicenp e de Criminologia na Unibrasil.

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