O tipo penal nos crimes dolosos (de acordo com a teoria constitucionalista do delito que adotamos) é a soma da tipicidade formal (ou objetiva) + tipicidade material (ou normativa) + tipicidade subjetiva. Da tipicidade material fazem parte três juízos valorativos distintos: juízo de desaprovação da conduta, juízo de desaprovação do resultado jurídico e juízo de imputação objetiva do resultado. No artigo precedente vimos várias situações de risco não proibido (ou não desaprovado juridicamente). A lista deve ser completada com as seguintes situações:
8) não há desaprovação da conduta quando o risco proibido criado é insignificante: a insignificância pode se dar em relação à conduta ou em relação ao resultado. No que se relaciona à primeira, sua solução é encontrada no âmbito do juízo de desaprovação da conduta. Conduta absolutamente insignificante é proibida, mas não é juridicamente desaprovada (desvalorada). No que concerne ao resultado insignificante, o enquadramento adequado ocorre no âmbito das exigências próprias da ofensa (que deve ser concreta, transcendental, intolerável e grave). Isso será visto logo abaixo (no âmbito do juízo do desvalor do resultado).
Jogar um copo d?água numa represa com 10 milhões de litros de água que veio a inundar toda área contígua por ato doloso do seu proprietário constitui uma conduta (uma participação) absolutamente insignificante. Sendo a conduta do agente, nesse caso, insignificante, não há que se falar em fato típico.
Outro exemplo: jogar uma bolinha de papel contra transporte coletivo não configura o crime do art. 264 do CP. O princípio da insignificância da conduta vale para o partícipe, que só pode ser penalmente responsabilizado se sua participação foi relevante (ou seja: se não foi banal, como diz Zaffaroni).
9) não há desaprovação da conduta quando ela é tolerada (ou seja, quando o risco criado ou incrementado é tolerado ou aceito amplamente pela comunidade): aqui, seja por força do juízo de desaprovação da conduta, seja em razão da teoria da adequação social (que será examinada em detalhes na seção seguinte), o fato é atípico. Exemplo: manutenção de motel. Formalmente, essa conduta é típica (CP, art. 229). Mas cuida-se de ato amplamente aceito e tolerado (aliás, pode-se dizer até necessário, em razão da insegurança vigente no país).
10) não há conduta desaprovada quando o sujeito atua para diminuir risco de maior dano: um carro desgovernado está se movimentando numa descida e vai atingir ?A?. ?B? o empurra e acaba produzindo nele lesões corporais. ?B? atuou para diminuir risco de maior dano. Logo, não há que se falar em responsabilidade penal. Há causalidade patente na conduta. Mas ela foi levada a cabo para reduzir risco de maior dano. Às vezes o dano causado é grave, mesmo assim, não há desaprovação da conduta (que foi concretizada em favor do bem jurídico, não contra ele).
No exemplo dado, o agente, para livrar a vítima do carro, deu-lhe um empurrão. Vamos supor que ela tenha batido a cabeça no solo e morrido. O agente agiu com a intenção de evitar risco de maior dano (de salvar o bem jurídico, não de lesá-lo). Não há o desvalor da conduta. Houve um resultado, mas não há nenhum desvalor da ação. Agiu para salvar o bem jurídico (logo, ainda que tenha causado a morte da vítima, não responde por ela). Na situação dada, não há que se falar em estado de necessidade porque o agente, que agiu para diminuir o risco, não corria risco algum. Não havia uma situação de conflito entre ele e a vítima (ou seja: entre bens jurídicos diversos). Apenas a vítima corria risco.
Há desaprovação da conduta na substituição do risco: não se pode confundir diminuição do risco com substituição do risco: ?A? coloca uma bomba no veículo da vítima para explodir no dia seguinte; ?B? coloca outra bomba para explodir imediatamente. O resultado somente é imputável a ?B?, porque houve substituição do risco. Na mera substituição do risco há desaprovação da conduta (e o agente responde normalmente pelo resultado).
11) não há desaprovação da conduta quando o fato está fora do domínio do agente: o sobrinho quer matar o tio e programa sua visita a um bosque na esperança de que ele venha a ser atingido por um raio e, de fato, o tio morre em conseqüência de um raio. Nesse exemplo paradigmático dado pela doutrina alemã não há que se falar em desaprovação da conduta do agente (do sobrinho) porque o fato (queda do raio) (assim como o resultado) está fora do seu domínio. Programar um passeio para o tio num bosque é uma situação de risco permitido, ainda que o dolo (frente à morte) esteja presente. Ninguém pode ser responsabilizado penalmente por aquilo que é obra do acaso. Quem paga e estimula freqüentes viagens para a sogra na esperança de que ela, um dia, venha a se acidentar e morrer pratica ato permitido. Logo, caso venham a ocorrer o esperado acidente e a morte, por nada responde o agente.
12) não há desaprovação da conduta na ?ação da vítima a próprio risco? (leia-se: quando a vítima auto-responsável se autocoloca em risco, praticando ela mesma a conduta perigosa): overdose em ação coletiva, em que a própria vítima é que exagera na sua dose e morre. Os outros participantes desse fato não respondem pela morte. De se observar que o agente não responde pelo fato porque a conduta perigosa foi praticada pela própria vítima. A autocolocação em perigo pressupõe ato da própria vítima, ou seja, é ela que pratica a conduta perigosa. Não há conduta perigosa gerada por um terceiro. O fato de esse terceiro estar junto com a vítima, por si só, não lhe pode gerar responsabilidade penal. Não é desaprovada (do ponto de vista do bem jurídico vida) a conduta de quem, coletivamente, está ingerindo substância entorpecente. Desde que se trate de pessoas auto-responsáveis, cada um só responde pelo seu delito (posse ou porte de drogas). Mas nenhuma pessoa do grupo é responsável pela autocolocação da vítima auto-responsável em risco, que veio a falecer em razão de ato próprio.
13) E se houver cooperação para a autocolocação em risco pela própria vítima? Também nessa hipótese não há desaprovação da conduta. ?A? aconselha ?B? a ser repórter numa guerra. ?B?, consciente do risco que isso implica, delibera praticar tal conduta e efetivamente morre. Se ?B? tinha plena consciência do risco (vítima auto-responsável), a morte não é imputável a ?A?, porque ?B? se autocolocou em perigo voluntariamente. E a conduta perigosa foi praticada pela própria vítima. Outro exemplo: ?A? convida ?B? a fazer a travessia do deserto de Saara. ?B?, auto-responsavelmente coloca-se em perigo, conduzindo seu veículo de forma imprudente e vem a falecer. ?A? não responde por essa morte, que derivou de ato da própria vítima.
14) E no caso de autocolocação em risco para salvamento de terceira pessoa? ?A? está se afogando, em razão de ter sido atirada na piscina por ?B?. ?C? se joga na piscina para salvar ?A? e acaba morrendo. ?C? estava consciente do perigo e mesmo assim, de forma auto-responsável, autocolocou-se em risco. O resultado morte de ?C? não pode ser atribuído a ?B?. Este só criou risco proibido frente a ?A?. Responde pelo que fez (perante a vítima ?A?). Nesse caso impende salientar que ?B? nem sequer participou da decisão tomada por ?C? de se jogar na água. Quando é a própria vítima que pratica a conduta perigosa, contra ela mesma, não há que se falar em responsabilidade penal de terceiros.
15) E se a vítima, depois de ferida, decide por si só (auto-responsavelmente) não permitir nenhum tipo de ajuda? ?A? feriu ?B?. A vítima, ferida, auto-responsavelmente recusa-se a receber qualquer tipo de tratamento ou de ajuda. Nesse caso ela incrementa, por ato próprio, o risco proibido precedente. Em razão da sua própria conduta (de recusa de socorro), a vítima vem a falecer. ?A? não pode evidentemente responder pelo resultado morte, porque foi a vítima auto-responsável que se autocolocou em perigo. ?A? só responde pelo que fez (ferimento contra a vítima).
16) E se a vítima aceita que outra pessoa a coloque em perigo? ?A? está com aids e não quer matar ?B?, que, conscientemente, aceita o risco de contaminação e pratica relação sexual com ?A?. O risco não foi criado por ?B? (vítima), mas foi aceito por ele. Parte da doutrina afirma que ?A? não responderia pelo eventual resultado morte. Essa solução é muito controvertida porque a conduta perigosa não foi praticada pela vítima, sim, pelo agente. A vítima apenas aceitou o risco. Mas aceitar o risco, no caso, significa aceitar o fim da própria vida (ou, no mínimo, colocar em sério risco o bem jurídico vida). Aqui ingressamos na velha polêmica da disponibilidade ou indisponibilidade do bem jurídico vida. Em princípio, a vida deve ser preservada. Por força do art. 4.º da Convenção Americana de Direitos Humanos, ninguém pode dela ser privado arbitrariamente. A solução dada pela doutrina (?A? não responderia pela morte) não parece a mais acertada. Quando está envolvida a vida humana, é muito complicada a solução apresentada (de não responsabilidade). Somente não há crime quando a vida foi afetada de modo razoável (morte do feto anencefálico, por exemplo). Fora disso, não há como deixar de reconhecer a existência de crime.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais – www.lfg.com.br)