Juiz Substituto Natural

Com exceção do período do Estado Novo(1), as Constituições brasileiras(2), desde a do Império, recepcionaram o Princípio do Juiz Natural, vedando julgamentos por tribunais e juízes de exceção.

Na Constituição de 1988, dois incisos do art. 5.º recebem o princípio do juiz natural: XXXVII e LIII.

Pelo inciso XXXVII, ?não haverá juízo ou tribunal de exceção?.

Cuida-se da proibição da criação de um órgão judicial posterior ao fato a ser julgado e ao julgamento especial de determinada pessoa ou pessoas, ainda que os fatos tenham ocorrido precedentemente à sua instalação.

Como registra Antônio Cláudio da Costa Machado, ?a exigência de preconstituição dos tribunais é corolário do estado de direito (CF, art. 1.º) e não significa impedimento à criação de justiças especializadas, nem se confunde com a prerrogativa de foro (como, v. g., a estabelecida pelos arts. 52, I, da CF, ou 100, I e II, do CPC). Anote-se, por fim, que tanto é juiz natural o órgão definido pelo critério objetivo (matéria, pessoa ou valor), como pelo critério funcional ou territorial de distribuição de competência?(3).

O inciso LIII do art. 5.º da Constituição Federal de 1988 tem a seguinte dicção: ?ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente?.

Duas acepções da expressão ?autoridade competente? destacam-se nesse dispositivo:

I – pessoa (órgão jurisdicional) legalmente investida na função judicante (princípio da investidura da jurisdição)(4);

II – aquele que exerce o poder jurisdicional ao caso concreto de acordo com competência previamente delimitada (competência propriamente dita).

Na doutrina de Humberto Theodoro Júnior, ?só pode exercer a jurisdição aquele órgão a que a Constituição atribui o poder jurisdicional. Toda origem, expressa ou implícita, do poder jurisdicional só pode emanar da Constituição, de modo que não é dado ao legislador ordinário criar juízes ou tribunais de exceção, para julgamento de certas causas, nem tampouco dar aos organismos judiciários estruturação diversa daquela prevista na Lei Magna?(5) .

Não se deve entender violado o Juiz Natural pelo fato de existirem Justiças Especializadas no Brasil (Militar, Eleitoral e Trabalhista), pois foram constituídas previamente pela própria Carta Fundamental, com competências bem delineadas. Ou seja: não foram criadas para casos concretos. Visam a uma prestação jurisdicional mais célere a determinadas matérias e pessoas.

A mesma observação é cabível ao foro privilegiado, existente em razão da prerrogativa de função e não com o intuito de privilegiar algumas pessoas. Dito de outro modo: existe a previsão legal antecedente aos fatos e às funções, daí não se afrontar o Juiz Natural.

2. O Juiz Substituto Natural

A importância que se atribui ao Juiz Natural deve ser conferida, na mesma medida, aos magistrados substitutos (no Paraná: Juízes Substitutos de início de carreira; Juízes de Direito Substitutos de 1.º Grau(6) e Juízes de Direito Substitutos de 2.º Grau), pois devem ser igualmente conhecidos de antemão pelos jurisdicionados.

Dos poucos autores que tratam do assunto,Adelino Marcon chama a atenção para a aplicação do Princípio do Juiz Natural também ao substituto: ?O substituto legal deve ser aquele já investido (pré-investido) nas funções de substituto, pois, ao revés, o princípio estaria vulnerado com designações aleatórias. Esta é uma das razões de existirem Seções Judiciárias como unidades de divisão judiciária em nosso Estado?(7).

O tema é de alta relevância, pois são inúmeras as situações em que juízes são substituídos por magistrados que não são seus substitutos legais.

Tanto o Código de Processo Penal como o de Processo Civil não admitem outra opção ao titular que se declarar impedido ou suspeito senão a de encaminhar os autos ao substituto legal (arts. 97 e 99 do CPP; art. 313 do CPC). Por conseguinte, deverá haver um juiz substituto legalmente competente e conhecido para atuar nos autos, pois, ao contrário, qualquer designação sem critério previamente estabelecido importará na desobediência ao Princípio do Juiz Natural.

No Paraná, o Código de Organização e Divisão Judiciárias (Lei Estadual 14.277/2003) procurou regulamentar a matéria em atendimento ao princípio de que todo juiz titular deve ter seu substituto legal precedentemente conhecido.

O território paranaense, para fins de divisão judiciária, é constituído de seções judiciárias, comarcas, foros regionais, municípios e distritos (art. 214, ?caput?, do CODJPR).

As seções judiciárias constituem agrupamento de comarcas ou foros regionais ou varas, ?assim organizadas para facilitar o exercício da prestação jurisdicional por Juízes Substitutos e por Juízes de Direito Substitutos, com a definição dos limites de competência atribuídos a cada um? (art. 223, ?caput?, do CODJPR).

A rigor, essa facilitação ao exercício da prestação jurisdicional pelos substitutos se traduz na necessidade de cada titular ter o seu substituto legal, de maneira a permitir ao cidadão saber, na ausência daquele (ou quando se declarar suspeito ou impedido), quem atuará nos autos, posto que, irrefragavelmente, o Princípio do Juiz Natural estaria sendo vulnerado se não fosse esse o raciocínio. De nada adiantaria ser anteriormente conhecido o juiz natural da causa se, em sua eventual ausência, não se puder saber quem o substituirá legalmente.

São sete as comarcas de entrância final no Estado do Paraná (Região Metropolitana de Curitiba, Cascavel, Foz do Iguaçu, Guarapuava, Londrina, Maringá e Ponta Grossa). À exceção da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, nas demais finais cada Juiz de Direito Substituto atuará num conjunto de varas. Por exemplo: o anexo II – tabela 2 do Código mostra que a Comarca de Cascavel é dividida em três grupos de varas (três seções judiciárias), e cada um é atendido por um dos três magistrados substitutos de final ali existentes, sempre conhecidos do jurisdicionado. E assim ocorre com as demais comarcas de entrância final.

Todavia, o sistema de substituição, à vista do Princípio do Juiz Natural, sofreu visível involução na Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, uma novidade do Código de Organização e Divisão Judiciárias (art. 236), que compreende, além da antiga Comarca de Curitiba (Foro Central), mais onze Foros Regionais (ex-comarcas da Região Metropolitana de Curitiba)(8).

Enquanto o Código anterior previa grupos de varas na então Comarca de Curitiba (seções judiciárias) para fins de atuação dos substitutos (cada titular tinha condições de saber quem era seu substituto legal, e assim também as partes e advogados), atualmente todos os foros da Comarca da Região Metropolitana compõem uma única seção judiciária (a 1.ª do Estado).

Isso significa que, a princípio, os cento e três (103) titulares dessa Comarca (incluindo-se aí os Juizados Especiais) possuem, cada um, cinqüenta e um (51) substitutos legais, muito embora o § 2.º do art. 223 do CODJPR preveja que a competência dos Juízes de Direito Substitutos nessa Comarca deva ser fixada por resolução.

O magistrado promovido ao cargo de Juiz de Direito Substituto da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba acaba por não ter conhecimento antecipado de sua competência e muito menos de sua lotação, o mesmo ocorrendo com o jurisdicionado, que, diante da flexibilidade do critério estabelecido (uma única seção para 51 juízes substitutos de final), enfrentará, quase sempre, a designação aleatória e móvel, quando o mais acertado seria tratar dessa matéria de igual forma como regulamentada às demais finais.

Não há dúvida de que o intento é o de permitir maior agilidade nos serviços, tanto que, hoje, existem dois juízes em cada vara cível do Foro Central (um substituto e o titular), o que não seria viável se o sistema anterior estivesse em vigor.

Inquestionável que o procedimento atual é calcado na boa-fé, mas não se deve desdenhar que os homens e as leis não têm o mesmo período de vida e de atuação, e um flanco legislativo dessa ordem pode gerar designações que invadam a própria competência do juiz natural, bem assim desnecessários mutirões e regimes de exceção (nome inadequadíssimo ao regime de auxílio, em virtude da carga do vocábulo ?exceção? no estudo do juiz natural).

O sistema ideal, sem apego ao extremado formalismo, mas sem relativizar desregradamente o Princípio do Juiz Natural (o que é perigoso a qualquer democracia), poderia embasar-se em estudos prévios de necessidade de auxílio nas varas da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, baixando-se resoluções com fixação de competência num período semestral, prevendo-se, sempre que possível, quem substituiria os juízes titulares, para prévio conhecimento dos cidadãos e da classe jurídica.

Outra forma de se evitar afronta ao Princípio do Juiz Natural seria a de se estabelecerem diálogos a respeito de sistemas de mutirão e de designações com a classe dos advogados e com o Ministério Público, obviamente sem efeito vinculante, mas com o propósito de se encontrar a melhor fórmula para a agilização dos serviços judiciários sem violar a garantia do cidadão de saber quem o processará e o julgará. Poder-se-ia propor que os designados aos mutirões (mencione-se o exemplo do ?Programa Paraná Sentença em Dia?) atuassem somente nos novos processos (e com ampla divulgação), enquanto o titular atuaria somente naqueles em que todos já o sabiam como natural (isso poderá criar desencontros numéricos, mas nada que não possa ser adaptado).

Nas seções judiciárias que correspondem a conjunto de comarcas (interior do Estado), cada uma delas tem o seu Juiz Substituto, possibilitando a todos o conhecimento antecipado de quem poderá substituir o titular durante sua ausência ou nos demais casos de lei.

3. Conclusão

Apesar de ser escassa a doutrina a respeito da vulnerabilidade do Princípio do Juiz Natural quando a sociedade é apanhada de surpresa com designações, com adoção de mutirões e com substituições aleatórias, a jurisprudência já vem enfrentando o tema de há muito.

Até mesmo o recém criado Conselho Nacional de Justiça já foi instado a se pronunciar sobre ele em determinada situação:

Procedimento de controle administrativo mutirão destinado a agilizar o julgamento de processos judiciais – Alegada violação ao princípio do juiz natural, com instituição de tribunal de exceção-inexistência Orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça improcedência da pretensão.

I – Em todo o Judiciário brasileiro, os chamados mutirões têm servido como importante instrumento adotado pela administração da justiça para agilizar a tramitação de processos. Na sistemática desses mutirões, a administração dos tribunais, com a autonomia que lhes é própria, se vale da prerrogativa legal e regimental de designar, por ato da presidência, juízes substitutos ou mesmo titulares voluntários, para auxiliarem determinado juízo.

II – Nos mutirões, não se cogita do afastamento dos juízes titulares das varas beneficiadas. Ao contrário, esses titulares somam seus esforços aos do grupo de magistrados designados para o auxílio e não raro os coordena. Da mesma forma, o ato de designação não vincula quaisquer dos juízes a determinado processo. O juiz não é designado para proferir sentença em dado feito. De modo absolutamente desvinculado, há um grupo de juízes de um lado e um acervo de processos do outro. O objetivo é liquidar o acervo, pouco importando quem profira a decisão, podendo ser o próprio titular da vara.

III – Os mutirões, portanto, não ofendem a garantia do juiz natural e muito menos cria tribunal de exceção. No caso dos mutirões, o juiz natural é aquele que, de modo aleatório, conforme a sistemática de trabalho adotada, recebe o feito para apreciação e o julga com a devida imparcialidade.

IV – Orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

V – Procedimento de Controle Administrativo rejeitado? (PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO 043/2005, Rel Conselheiro PAULO SCHMIDT, j. em 31/1/2006(9)).

É mister se cercar de especiais cuidados no momento de se implantarem esses procedimentos que, ao primeiro olhar, se apresentam contrários ao Princípio do Juiz Natural, concretizando-os somente depois de estudos sistemáticos, e ouvidos os advogados e o Ministério Público, para que a relativização de um princípio constitucional não passe a ser retórica de autoritarismos desenfreados. A celeridade não pode atropelar o Juiz Natural, mas pode com este conviver, desde que a transparência e a divulgação prévia das medidas a serem adotadas se realizem.

Quanto à Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, até mesmo para que magistrados saibam onde atuarão quando a ela forem promovidos a substitutos de final, o alvitre seria o de se publicar, semestralmente, de acordo com as necessidades, resolução em obediência ao dispositivo do Código de Organização e Divisão Judiciárias que prevê que a competência dos Juízes de Direito Substitutos será fixada por resolução (art. 223, § 2.º).

Notas:

(1)     Nos arts. 122 e 17 da Constituição de 1937, estabelecia-se que ?os crimes que atentarem contra a existência, a segurança e a integridade do Estado, a guarda e o emprego da economia popular serão submetidos a processo e julgamento perante Tribunal Especial, na forma que a lei instituir?.

(2)     Cartas de 1824 (art. 179, inc. 17), de 1891 (art. 72, § 23), de 1934 (art. 113, n.º 25), de 1946 (art. 141, § 26, de 1967 (art. 150, § 15), Emenda Constitucional n.º 01, de 1969 (art. 153,  15) e a de 1988 (art. 5.º, XXXVII e LIII).

(3)     Normas processuais civis interpretadas, artigo por artigo, parágrafo por parágrafo, da Constituição Federal. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p. 07/08.

(4)     Só se permite o exercício da jurisdição por quem nela estiver investido por ato oficial e legítimo.

(5)     Curso de Direito Processual Civil, vol. I, Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento, 15.ª edição, Rio: Forense, pág. 38

(6)     Denominação contida no art. 25 do novo Código de Organização e Divisão Judiciárias do Paraná.

(7)     Ob. cit., p. 192.

(8)     Almirante Tamandaré, Araucária, Campo Largo, Bocaiúva do Sul, Campina Grande do Sul, Colombo, Fazenda Rio Grande, Pinhais, Piraquara, Rio Branco do Sul e São José dos Pinhas

(9)     Site www.cnj.gov.br.

José Maurício Pinto de Almeida é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. jomapial@terra.com.br

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