O juiz da comarca de Bacabal (MA) liberou da cadeia, no dia 8/4/09, cinco presos. Determinou o recolhimento domiciliar (o que significa que continuam sob a custódia do Estado, embora a distância). Motivo: superlotação do presídio local. Numa cela de 16 metros quadrados, que, pela lei, só pode receber três presos, encontravam-se dezesseis presos (quase seis vezes mais do que determina a lei).

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Das 150 cadeias do Estado do Maranhão, 60 estão interditadas (disse um membro do Ministério Público). A situação é caótica e retrata bem a situação em todo país. Disse o juiz: “Aqui em Bacabal, no Estado e no país, o que nós temos são masmorras. E é uma situação intolerável. Precisa ser modificada”.

O ato do juiz está totalmente de acordo com a Constituição brasileira, tratados de direitos humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Também está em consonância com a lei de execução penal, que no seu art. 185 define o excesso ou desvio de execução da seguinte maneira: “Haverá excesso ou desvio de execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares”.

A superlotação dos presídios viola a sentença, todas as normas legais vigentes no país, assim como a CF e os tratados internacionais de direitos humanos. Configura, portanto, excesso ou desvio de execução, que tem origem no total descumprimento (pelo Executivo) do que foi estabelecido no art. 203 da lei de execução penal. Por força desse dispositivo, os Estados e a União tinham seis meses para fazer toda adequação dos presídios brasileiros.

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O Poder Executivo não cumpre a sua parte e acaba “obrigando” o juiz (humanista) a tomar providências concretas. No caso concreto o juiz acabou optando pelo regime domiciliar. Estritamente falando não há base legal para isso (LEP, art. 117). De acordo com outros precedentes no país, provavelmente o juiz deverá ser punido (ou repreendido pela sua Corregedoria). A hipocrisia é contagiante, sobretudo depois da pressão da mídia. Se a Corregedoria não estiver vacinada, vai sucumbir diante dessa pressão e vai punir o juiz (que está cumprindo a Constituição e os tratados internacionais).

Talvez o melhor caminho nessas situações de descalabro seja uma ação civil pública, para obrigar o Estado a cumprir o seu papel. Uma multa diária de alguns milhares de reais, para o caso de descumprimento, poderia resolver a situação (isso os juízes americanos fizeram no princípio dos anos sessenta, nos Estados Unidos). Essa, entretanto, não é a política jurídica reinante no nosso país. Que sempre preferiu a zona conformista e cômoda da política do “hands off” (lavar as mãos).

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Acontece que quem vive deitado eternamente nesse berço esplêndido do conformismo não pode dizer que é um cidadão. A política da cidadania orienta para o controle jurídico do Poder Político (que compreende o Executivo e o Legislativo), em todos os seus atos (e omissões).

Podem até punir o juiz, mesmo sabendo que os órgãos jurisdicionais do sistema interamericano de direitos humanos (Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos), sem sombra de dúvida, seguindo sua clássica jurisprudência, vão condenar reiteradamente o Brasil pelos maus-tratos e desumanidade dos seus presídios.

Já são vários os casos que foram parar na Corte Interamericana (caso Araraquara, caso Urso Branco, caso Febem etc.). Em todos eles a Corte vem “Reiterarando ao Estado brasileiro que mantenha as medidas necessárias para impedir que os jovens (e presidiários em geral) internos sejam submetidos a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, entre eles isolamentos prolongados e maus tratos físicos.”

A Corte vem enfatizando que o Estado brasileiro a) reduza consideravelmente a aglomeração nos presídios, b) confisque as armas que estejam em poder dos presos, c) separe os internos, de acordo com os padrões internacionais sobre a matéria e tomando em conta o interesse superior do preso, e d) preste atenção mé,dica necessária aos internos, de tal maneira que garanta seu direito à integridade pessoal. Nesse sentido, o Estado deverá realizar uma supervisão periódica das condições de detenção e do estado físico e emocional das pessoas detidas, que conte com a participação dos representantes dos beneficiários das presentes medidas provisórias.

Dentro de pouco tempo começaremos a ver enxurradas de condenações contra o Brasil (que serão impostas pela CIDH) em virtude do seu total abandono em relação ao sistema penitenciário. O Brasil, também nessa área, é um dos maiores violadores de direitos humanos (é um dos países que mais cometem crimes jushumanitários). A Corte já condenou o Brasil a pagar 146 mil dólares de indenização em favor da família de Ximenez Lopes (que morreu numa clínica pública sem assistência médica). Não tardará muito para começarmos a ver incontáveis condenações por violação de direitos humanos nos presídios. Essa é a conta que nós brasileiros teremos que pagar (por não sabermos, talvez, o que é cidadania).

Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito Penal pela Universidade de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, professor de Direito Penal na Universidade Anhangüera e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).