O presidente da Federação dos Juízes pela Democracia da América Latina e Caribe, o juiz argentino Gerónimo Sansó, acenou hoje com a possibilidade de a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), prevista para começar em 2005, promover uma espécie de “argentinização” do continente.

Ele descreveu como “lamentável” a experiência recente de seu país, marcada por privatização de serviços públicos sob condições amplamente vantajosas para os compradores e paridade com o dólar que destruiu a indústria local, pelo barateamento das importações. Sansó atribuiu a elas a profunda crise em que a Argentina se debate há anos.

“Esse modelo faliu”, afirmou, durante o 2.º Fórum Mundial de Juízes, um dos eventos integrados ao 3.º Fórum Social Mundial, que começa oficialmente quinta-feira.

Sansó, um magistrado que foi afastado do cargo pelo golpe militar de 1976 e voltou à ativa no ocaso da ditadura, reconheceu que o modelo argentino anterior tinha problemas graves, com grande parte dos serviços públicos, controlados pelo Estado, funcionando mal e gerando déficits.  “As estradas de ferro tinham uma perda diária de US$ 1 milhão”, relatou. “A arrecadação não passava de 50%; 50% dos passageiros não pagavam.” Os telefones eram de má qualidade, só se conseguia linhas por suborno ou influência política e os déficits levaram a emissões que causaram a hiperinflação, relatou.

Segundo o magistrado, as políticas implantadas a partir dos anos 90 no país apresentaram inicialmente ótimos resultados, com telefones em abundância, melhorias em serviços e fim da inflação, pela paridade do peso com o dólar. “Tínhamos a arrogância de viajar pelo mundo gastando quase com prodigalidade”, contou.

As novas concessionárias, porém, além de beneficiadas por licitações que previam que poderiam pagar as empresas, em parte, com títulos da dívida externa argentina, que eram comprados no mercado com grande deságio, receberam grandes patrimônios imobiliários e promoveram demissões em massa de funcionários.

“A saída foi contratá-los no Estado, as repartições cresceram, o salário oficial constituía uma espécie de seguro-desemprego”, narrou.

Houve um déficit ainda maior nas contas, a dívida interna cresceu a níveis impagáveis, por causa das altas taxas de juros, e a atividade industrial caiu. “Era o auge das importações; importávamos de guarda-chuvas a bicicletas. As indústrias eram de aparência, apenas importadoras.” A tradição argentina de proteção ao trabalho também foi rompida, com a revogação de garantias trabalhistas dos antigos contratos de trabalho. “Surgiram os contratos-lixo, que não previam quase nada.”

O resultado está nos indicadores sociais: mais de metade da população argentina é considerada pobre, os maiores rendimentos são de 27 a 30 vezes o valor médio, a classe média foi expulsa para a pobreza e os pobres, para a indigência. O naufrágio da paridade deixou seqüelas no Judiciário, com crescente número de processos de poupadores que exigem de volta os dólares que tinham depositados ao câmbio de um por um. “É a juridicialização das operações bancárias”, afirmou.

Burocratas

Sansó advertiu que as soberanias nacionais têm caído “de forma progressiva”, com a formação de organismos nacionais e internacionais coordenados, na globalização, pelo que chamou de “império”. “É um aparelho descentralizado e sem território, que lida com identidades híbridas, hierarquias flexíveis e intercâmbios plurais, em que os três mundos se misturam”, disse.

Ele lembrou que a Alca está sendo discutida por 900 burocratas dos países envolvidos, que não se sabe bem como foram escolhidos, mas que não conseguiram avançar. “A declaração de Quito, de 2002, com 40 pontos, quando a esprememos  não sai nada”, disse ele. “Até hoje, concretamente, não há nenhuma negociação realizada, nenhuma barreira alfandegária derrubada.”

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