O “senhor do Direito” no século XIX foi o Poder Legislativo. No século XX foi o Poder Executivo.

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No século XXI, por força do neoconstitucionalismo, é o Poder Judiciário. Já não se confunde a “lei” com o “Direito”.

O juiz já não é aquele “ser inanimado” de que falava Montesquieu (nos albores do século XIX). Nem tudo que o legislador aprova é válido. Vigência não se confunde com validade da lei. Nem tudo que o Poder Executivo edita tem o apoio do Judiciário.

Quem controla a constitucionalidade de todos os atos normativos é o juiz (controle difuso) e, especialmente, o STF (controle incidental e concentrado). O Direito, destarte, é construído desde a obra do constituinte até às decisões judiciais, passando pelo direito legislado. O processo de judicialização do Direito já é uma realidade incontestável (quem produz, finalmente, o Direito é o juiz e a Corte Suprema).

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Claro que esse novo processo (judicialização do Direito), já em andamento, oferece riscos. Deles é que cuidamos no nosso livro Do Estado de Direito constitucional e transnacional: riscos e precauções (L. F. Gomes e Rodolfo L. Vigo, São Paulo: Premier, 2008, p. 155 e ss.).

Particularmente sobre o risco de judicialização da administração pública o Prof. Vigo, que é filófoso do Direito em Buenos Aires, sublinhou o seguinte: “O Poder Judiciário como Poder Administrador: a protagonização judiciária não só pode afetar o Poder Legislativo, bem como pode alcançar o Poder do Estado, isto é, o Poder Executivo. (à) Malgrado tais prognósticos é evidente que é possível ler na Constituição exigências ou modos de atuação do Poder Executivo, e igualmente não é ilógico que se lhe imponham certos deveres ou proibições”.

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“Ainda mais quando se observa a crise das chamadas “questões políticas”, livres do controle jurisdicional, e aumenta a pressão para que se satisfaçam os denominados direitos humanos econômicos, sociais e culturais.

Cada vez mais, se decidem judicialmente problemas que têm a ver com o manejo do orçamento ou com o próprio Poder Administrador, e o cidadão ou o funcionário público sabe que para conseguir que se respeitem seus direitos ou satisfaçam suas pretensões conta com instâncias judiciais cada vez mais independentes”.

“Em muitos países vizinhos, existe a opinião pública de que os melhores juízes são aqueles que ditam sentenças contra o Executivo, o que pode gerar uma tentativa de protagonização judiciária por força da condenação de governantes do momento, ainda que tenham razão. Com efeito, o neoconstitucionalismo pode promover juízes que em nome da Constituição substituam ou imponham ao Administrador critérios que propriamente não são aconselháveis desde o ponto de vista do bem comum”.

Dentre tantos que poderiam ser invocados, eis um exemplo de judicialização da administração pública: “Educação Infantil – Obrigação Constitucional do Município – AI 677274/SP Rel. Min. Celso de Mello. EMENTA: CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC N.º 53/2006). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2.º). AGRAVO IMPROVIDO.

– A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV).

– Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigaç&atil,de;o constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.
– A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.
– Os Municípios que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2.º) não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.
– Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à “reserva do possível”. Doutrina”.

Até que ponto pode o Judiciário interferir no orçamento do Estado? O Judiciário pode e deve (com equilíbrio e razoabilidade) ditar sentenças que afetam diretamente o orçamento público, mas nem tudo que é determinado pelo juiz pode ser cumprido pelo Poder Público.

Até que limite pode o Poder Público invocar a “reserva do possível”, ou seja, a impossibilidade de se cumprir a decisão judicial em razão da inexistência de recursos orçamentários? Em regra cabe ao Poder Público cumprir a decisão judicial (fazendo-se os devidos ajustes orçamentários).

Quando não há nenhuma possibilidade para isso, cabe à Administração Pública demonstrar, de modo inequívoco, a sua impossibilidade, visto que somente assim estará escutada no princípio da “reserva do possível”.

Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito Penal pela Universidade de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).