Hipócrates (460-377 a.C.), o pai da Medicina, pregava que a saúde do homem depende do equilíbrio de quatro humores: sangue, bílis amarela, bílis preta e fleuma. Foi daí que extraiu a sua visão sobre os temperamentos humanos, teoria, aliás, comprovada pelo velho Pavlov, em seus laboratórios, quando fez uma distinção entre cães melancólicos, fleumáticos, coléricos e sanguíneos. Dos quatro tipos de sistema nervoso, os coléricos exibem certo desequilíbrio, porque, entre eles, a excitação prevalece sobre a faculdade de inibição. A recorrência à ciência médica se faz, aqui, necessária para demonstrar que o presidente Lula vai ter dor de cabeça para administrar os comportamentos de dois clones do modelo hipocrático, caso sejam confirmados na administração federal: Itamar Franco, o colérico, e Ciro Gomes, o sanguíneo.
O governador de Minas, ao longo desses últimos anos, tem dado seguidas mostras de um temperamento que extravasa as tabelas do bom senso. Parece completamente envolvido pela síndrome do touro, que pensa com o coração e arremete com a cabeça, o que, convenhamos, não é um comportamento que se espera de um ex-presidente da República ou de quem quer exercer a liturgia da diplomacia, à qual se vinculam regras claras, como hierarquia, equilíbrio, moderação e disciplina. Ao ameaçar ir à Justiça contra o governo federal e “revelar os bastidores da negociação”, caso não consiga dinheiro para pagar o 13o salário ao funcionalismo, Itamar se escuda numa estratégia que, a par da tática de chantagem, descortina um horizonte de vulnerabilidade no livro das contas públicas. É claro que qualquer benefício concedido a Minas Gerais deverá ser estendido a outros Estados que se achem no direito de procurar ressarcir recursos junto à União pelo fato de terem investido em estradas federais. O pesadelo inicial do Governo Lula será um susto de R$ 9 bilhões.
Consideremos, no entanto, que a questão seja resolvida. O legado discursivo do governador, no qual se incluem ironias a Antônio Palocci, ficará esquecido? Digamos que Itamar tome o rumo de uma embaixada. Será perdoado pelo presidente da República, quando manifestar opiniões polêmicas e fizer críticas à administração, como o fez por ocasião das funções que exerceu em Washington junto à OEA por magnanimidade do presidente Fernando Henrique? Se reagir negativamente diante de uma ordem do superior hierárquico, o ministro das Relações Exteriores, que deverá ser um ex-subordinado seu, ficará no cargo? Ora, manifestações do núcleo central do PT evidenciam que a nova administração obedecerá a um figurino vertical. A disciplina e o comando férreo das estruturas fazem parte da cultura petista. Quem estiver fora de sintonia ganhará o caminho da rua.
Se esse balizamento doutrinário não for apenas intenção, Ciro Gomes deverá enfrentar dificuldades caso ganhe um ministério. Ciro começará a esquentar, quando o novo comando passar a indicar nomes para os cargos-chave de todas as estruturas. Os tipos sanguíneos têm reações ágeis e sua força de excitação os aproxima dos temperamentos coléricos. Para quem achava que Lula não tinha preparo para ser presidente da República, será um exercício penoso aceitar pontos de vista e decisões que, seguramente, não deverão combinar com a auto-suficiência de quem se julga um dos mais preparados quadros da administração pública do país. Por isso, o vôo de Ciro nos céus de Lula tem previsão de curta duração.
Itamar, longe, e Ciro, perto, poderão ser os dois eixos mais pontiagudos do sistema nervoso da administração lulista. Quem já foi presidente da República e é considerado o responsável pelo Plano Real, investe-se da condição de Pai da Pátria, com direito às glórias que os antigos romanos concediam aos grandes artistas: “poetis et pictoribus omnia licet” (aos poetas e pintores, tudo é permitido). Ou seja, sugerir, criticar, falar coisas impróprias, agir de maneira inadequada, tudo isso poderia fazer parte do rol do perdão. Itamar merece tal glorificação? Quem já foi governador, prefeito de capital, ministro da Fazenda e se considera um schollar, estará sempre medindo seu comportamento pelo termômetro da auto-estima e do reconhecimento público. Ciro vai agüentar um sistema de mando sobre o seu ego?
Do alto de sua legitimidade e dos céus das mais altas esperanças nacionais, o presidente Lula se sentirá motivado a usar o cetro de sua força para demover atitudes, gestos e discursos que possam vir a comprometer a linha-mestra que traçou para seu Governo. Suas origens humildes, ao contrário do que alguém possa imaginar, reforçarão a convicção, que ele próprio alimenta, de que é o poder e, assim o sendo, deverá usá-lo com energia quando as circunstâncias o justificarem. Nesse sentido, Itamar e Ciro deverão dar adeus às ilusões. Se cometerem falta, estarão fora do jogo.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautorq@gtmarketing.com.br