Será que a Irlanda, após o não ao Tratado de Lisboa, divulgado na fatídica sexta-feira 13 de junho, ficará isolada perante seus parceiros da Europa comunitária? Será que, diante da saraivada de críticas que tem recebido dos seus pares, ficará a Irlanda adormecida à espera de, um belo dia, se ver espelhada num lago, e afinal descobrir que era um cisne, marginalizado nesta ninhada de patos?
A Mãe Pata, no dia 13 de dezembro de 2007, no majestoso jardim do Claustro do Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, colocou no seu ninho vinte e sete ovos. Desta ninhada vinte já nasceram – dezenove lindos patinhos, e um muito feio e desajeitado. Há ainda sete ovos por abrir, e este patinho feio nutre a esperança de que nasça mais algum à sua semelhança. Há ainda o caso de reconhecimento de paternidade de dois patinhos os presidentes da Polônia e da Alemanha se recusam a promulgar a ratificação do tratado, que, todavia, já foi aprovado pelos seus respectivos parlamentos. E agora, o que fará a Mãe Pata?
Este conto de Hans Christian Andersen, que data do século XIX, continua a ser atual e ainda comove muitas gerações. A discriminação do personagem principal, enquanto era tido como uma aberração entre os seus irmãos patos e a sua alegria ao ver-se refletido na água como um belo cisne, tornou-se um alerta contra o preconceito e uma metáfora da importância de se respeitarem as diferenças.
É incrível ver o desrespeito da Europa pelas diferenças no que diz respeito à forma como recebeu o não francês e holandês e a sua atitude perante o não irlandês. O primeiro não, em finalde maio e princípio de junho de 2005, respectivamente, paralisou a Europa. Já este segundo não, também no mês de junho, só que de 2008, é tratado com desprezo e falta de consideração. E digo falta de consideração porque este não foi dado pela voz do povo e não pela voz dos parlamentos, que afinal poderia se traduzir no mesmo resultado, não fosse o fosso que os separa. Lembre-se que, se o Tratado Constitucional, chumbado por referendo na França e na Holanda, optasse pela via parlamentária, teria sido aprovado por 65% dos parlamentares em França, e por 75%, na Holanda.
A Europa, diante desta inesperada recusa, pensou numa estratégia de emergência para o cerco à Irlanda: os Estados membros que ainda não ratificaram o Tratado de Lisboa devem-no fazer rapidamente, para então isolar aquele país rebelde, que, sem saída, deverá arranjar uma solução para o ?problema? por ele criado. E já há repercussão às instruções de Bruxelas, com a ratificação, no intervalo de apenas uma semana do referendo irlandês, pelo Reino Unido, que costuma criar grandes entraves aos avanços comunitários até hoje este Estado se recusa a aderir à moeda única e pela Espanha que o ratificou, no passado dia 26 de junho, com a espetacular marca de 97% de aprovação parlamentar.
Diante dos obstáculos que vão surgindo pelo caminho das ratificações ao Tratado de Lisboa, torna-se difícil prever o destino da União Européia. Uma coisa é certa, o sonho de ver o Tratado de Lisboa entrar em vigor em 1.º de janeiro de 2009 já vai por terra. A presidência francesa da União Européia, que teve início em 1.º de julho, viu ofuscada a sua pretensa ?presidência das luzes?, pois com ela nasceria uma nova era para uma nova Europa – a Europa de Lisboa. Caberá à França a árdua tarefa de tentar acomodar as abóboras na carroça comunitária para entregá-la à próxima presidência, a ter início em janeiro de 2009. E, para o deleite daqueles que não simpatizam com o novo tratado, a próxima presidência vem mesmo a calhar: a República Tcheca.
Vislumbra-se, portanto, um período de turbulência. E, diante dos recentes entraves criados pela Polônia e pela Alemanha, para além do ceticismo tcheco, coloca-se a seguinte questão: será que as declarações bélicas vindas de alguns dirigentes europeus de deixar a Irlanda para trás, poderá se estender a outros países dissidentes? Ou será que, ao invés de se tentar impor um tratado ?goela abaixo? a todos os cidadãos comunitários, não seria a hora de ouvir o grito surdo daqueles que são os destinatários de todo este projeto?
A leitura que Bruxelas precisaria fazer, diante da manifestação popular, é a de que, se os cidadãos não compreendem a arquitetura da União, a culpa é dos arquitetos que a projetam, e não do povo. Como vaticina o grande mestre Oscar Niemeyer, ?no dia em que o mundo for mais justo, a arquitetura será mais simples?. E, talvez, neste mundo mais justo, nasçam mais cisnes do que patos.
Elizabeth Accioly é doutora em Direito Internacional pela USP. Advogada e professora de Direito da Integração Regional, em Portugal. bethaccioly1@hotmail.com