Invasão de privacidade

As relações entre o Estado – representado pelo governo e suas infinitas ramificações – e os cidadãos colocam os interesses daquele acima dos particulares. Isso porque o Estado, pelo menos teoricamente, representa toda a sociedade e se de toda a sociedade são certos direitos e prerrogativas, não se entende que se sobreponham interesses pessoais ou mesmo de grupos ou pessoas jurídicas. Não obstante, é necessário que essas relações se façam com respeito à privacidade dos cidadãos. No que concerne ao Estado, hão de seus atos ser da maior transparência possível, para que não existam abusos dos mandantes do momento e se veja que trabalham pelo bem público, como de sua obrigação.

Existem, pois, limites a enquadrar o Estado para que não abuse de seu poder e permita que cada cidadão conserve seus direitos individuais, sua privacidade e entregue ao governo apenas e tão-somente a parte legítima que deve ser sua quota de colaboração ao bem comum. Agir de forma contrária é implantar o Estado ditatorial, o governo invadindo a privacidade dos cidadãos, atentando contra seus direitos pessoais e mesmo contra a sua liberdade. Nesse tipo de abuso, muitas vezes exercido ?manu militari?, é que se escudam as ditaduras, muitas das quais se implantaram e perduraram sangrentas, subtraindo a liberdade física dos cidadãos, quando não até suas próprias vidas.

O que acabamos de ver, em relação às contas bancárias do caseiro Francenildo dos Santos Costa, que cuidava de uma casa suspeita alugada em Brasília para reuniões secretas do grupo que cercava o até então ministro da Fazenda, o todo-poderoso Antônio Palocci, foi uma invasão de privacidade por quebra de sigilo, um dos direitos individuais garantidos constitucionalmente e que só pode ser desvendado por ordem judicial e em nome de um bem maior. Mas o que aconteceu foi que os homens do poder não respeitaram a privacidade e invadiram a conta bancária do referido trabalhador para buscar uma defesa para fundadas suspeitas de que na referida casa funcionava um verdadeiro sindicato do crime, lá reunindo-se e confabulando um grupo de auxiliares e ex-auxiliares do ministro. E, de acordo com as mais recentes investigações conduzidas pelos procuradores da República Gustavo Pessanha Velloso e Lívia Nascimento, estavam envolvidos nessa ilicitude o próprio Palocci, o ex-presidente da Caixa Econômica Jorge Mattoso, que, descoberto, pediu demissão do cargo, e o ex-assessor de imprensa da Fazenda, Marcelo Netto, que também deixou o cargo quando pego com a boca na botija.

No caso, eram braços do próprio Estado invadindo a vida privada de um cidadão e chafurdando suas contas bancárias, o que é civil e penalmente punível e uma ousadia política – ou de falta de ética política -, que desvenda mais uma corrente  de um mar de lama que não se sabe onde acaba, embora pareça claro onde começa.

O lamentável evento, que gerou uma séria crise no governo e derrubou o mais poderoso ministro de Lula, conduziu à descoberta de que o desrespeito ao sigilo bancário dos cidadãos brasileiros não é uma coisa incomum. Auditores do fisco violam o sigilo de milhares de pessoas. Isso está sendo investigado pela Corregedoria da Receita Federal, que descobriu que está havendo quebra de sigilo dos dados fiscais de cerca de seis mil pessoas físicas e jurídicas. Nessa lista de vítimas há juízes, desembargadores, jornalistas, empresários e autoridades do próprio governo.

Dentre os que tiveram suas contas invadidas e seus sigilos violados estão até o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, o deputado federal e ex-ministro das Comunicações Eunício Oliveira e duas empresas de Marcos Valério de Souza, o publicitário mineiro que montou o esquema de corrupção política e eleitoral para sustentar o grupo situacionista e o apoio parlamentar que o mesmo reunia para suas ações no governo. Aí, é o Estado intrometendo-se na vida privada da própria turma de Lula, o que nos leva a imaginar o que não podem estar fazendo em relação aos opositores.

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