No caminhar do mundo e do Brasil percebemos problemas políticos comuns em todas democracias. Todas enfrentam crises em seus sistemas de representação democráticas sindical, parlamentares, eleitorais e partidários. Sistemas recentes que foram constitucionalizados há apenas 100 anos na humanidade. Mas tudo isso seria diferente se não tivéssemos a interrupção da democracia durante os anos 60 e 80.
Afinal, como nos ensina Perry Anderson, perdemos naquela época duas gerações, a de 45 e de 68, de democratas e liberais preparados no estudo e na prática continuada da democracia. Perdemos em capital humano e em capacidade democrática na solução dos conflitos. Perdemos porque mataram e afastaram democratas e liberais qualificados nos EUA, aqui e em todos os lugares do mundo. É por isso que o mundo está como está. Com sistemas sindicais, parlamentares, eleitorais e partidários que deformam a vontade popular e que desqualificam a representação. Falo isso para dar um testemunho da importância da afirmação de Perry Anderson.
Tinha eu meus 12 anos quando meu irmão mais velho foi preso pelo arbítrio e confinado no Presídio do Ahu, durante três anos. Antes de ser preso, lembro como hoje, numa de suas idas a Campo Mourão, durante as férias, afixou na cabeceira da minha cama uma grade de horário para eu organizar meus estudos e leitura dos livros que ele deixava em casa. Depois, quando o visitava juntamente com seus amigos do presídio, me indicavam mais livros, músicas e filmes.
Quando foi para o exílio, junto com meu outro irmão, deixaram mais livros. Li todos, mas como demoravam a voltar, aproveitei para ler muitos outros. Foi assim que, desde minha adolescência, tomei contato com leituras complexas de política, filosofia e da cultura em geral, graças à influência daquelas gerações de homens e mulheres inteligentes que o arbítrio jogava fora. Eles me deixaram os livros de Lukacs, Pannekoek, Mao, Dimitrof, Trotsky, Althusser, Marx que me levaram a Weber, Pareto, Guerreiro Ramos, Cirino, Feuerbach, Gramsci, Mariategui, Bernstein, a Escola de Frankfurt, Hunt&schermann, Offe e os liberais Popper, Hayek, Mencken e Schopenhauer.
Para entender o Brasil, deixaram Chico de Oliveira, Celso Furtado, Faoro, Euclides e Buarque de Holanda. Para montar uma estratégia, Maquiavel, Sun Tzu, Giap, que me levaram, a Virilio. Já para compreender a comunicação e a linguagem deixaram Macluhan, que me levou a ler, Bakhtin, Derrida, Barthes, Deleuze, Eco e Foucault. Na convivência com eles via o entusiasmo naquelas conversas de cinema, quando me apaixonei pelos trabalhos de Felinni, Trauffaut, Eisenstein, Polanski e Buñuel o que aproximou-me da obra de Kurosawa, Bergmann, Welles, Kubrick, Coppola, Scorsese, Bertolucci, Allen, Fassbinder e Visconti.
Escutando aquelas músicas de Cat Stevens, João do Vale, Simon, Joe Cocker, Taiguara e Credence, que me levaram a gostar de Clapton e Springeensten. Deixaram livros de Gorki, Zola, Hugo, Gogol, Tolstoi, Dostoievski, Steinbeck, Brecht, Maiakovski, Whitmann que me encaminharam para Homero, Proust, Dante, Goethe, Shakespeare, Balzac, Cervantes, Neruda, Borges, Lampeduza, Buzatti, Milton, Kafka, Pessoa, García Márquez e Camões.
Deixaram Marcuse e depois fui atrás de Freud, Reich, Pichon-Reviere, Pavlov, Skinner e Vigotsky. Deixaram Levi-Strauss e que me levaram a procurar Jung, Clastres, Frazer, a Bíblia, o Alcorão e o Talmud. Mais tarde, lendo Perry Anderson, fui entender que estamos nesta situação por falta de continuidade democrática e devido aos homens e mulheres democratas e liberais preparados terem sido mortos e afastados dos sindicatos, governos, partidos e parlamentos. Acrescido da implantação de uma sociedade de consumo de massa, juntamente com uma reforma de ensino, como nos mostra Allan Bloom, para mediocrizar e tecnificar o conhecimento aqui e no mundo, acoplado a imposição de um sistema de produção e um modelo de desenvolvimento concentrador e excludente, sem a participação da sociedade. Enquanto os assassinos econômicos, como nos ensina John Perkins, vendiam projetos faraônicos e endividavam o terceiro mundo.
Talvez agora, meus amigos de luta estudantil e democrática entendam uma das marcas do meu comportamento, de forma insistente, distribuindo livros e textos para lerem. Sempre foi uma tentativa de fazer o elo do conhecimento das gerações anteriores com as novas, além do desespero é claro de evitar chegar onde chegamos. O que não muda a nossa crença de que somente com a ampliação da democracia e a melhoria dos nossos padrões educacionais e culturais poderemos recuperar a perda daquelas gerações.
*Dedico este artigo ao Luiz Carlos Delazari, ao Fábio Campana, Almir Feijó e ao José Maria Correia que orientaram meu olhar para o cinema em razão de sua paixão transbordante pela arte.
Geraldo Serathiuk é delegado Regional do Trabalho do Paraná.