A Polícia Federal brasileira constitui, hoje, um dos principais paradigmas em nível nacional, quando se trata do uso da inteligência como instrumento efetivo no combate à criminalidade, com especial ênfase ao crime organizado.
Tendo desenvolvido suas técnicas ao longo dos anos, com o auxílio de organismos internos e do exterior, aliando o conhecimento específico ao grande e contínuo avanço das tecnologias utilizadas para o exercício desse mister, a Polícia Federal tem operado com uma demonstração clara de que é possível, com recursos e preparo adequado do corpo policial, fazer frente aos criminosos e ampliar a capacidade do sistema de segurança pública como um todo, fornecendo ao cidadão e à sociedade a paz e a tranqüilidade necessárias à convivência harmoniosa.
Esse padrão de excelência é alcançado pelo tratamento adequado da informação, posteriormente transformada em conhecimento, inteligência e ação, com acesso às mais diversas ferramentas tecnológicas. Sempre é necessária a transformação de informação (dados não tratados), para o alcance do conhecimento estratégico, conhecimento esse buscado, inclusive, por empresas para conquista de mercados, pelo que se chama ?inteligência competitiva? e ?gestão de informação?.
Infelizmente, em alguns pontos, a forma de obtenção e tratamento dos dados relativos às operações mencionadas e, por que não dizer, de praticamente todo o conjunto de apurações levadas a efeito pela Polícia Federal, se ressente, entre outras coisas, de uma maior organização e sistematização. Ainda existe compartimentação excessiva, que é desnecessária e improdutiva: ao invés de garantir uma hipotética segurança, inviabiliza-se a utilização das informações em trabalhos de repressão ao crime organizado.
2. A CONCEPÇÃO MODERNA E DEMOCRÁTICA DA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA
A doutrina de inteligência policial ainda é incipiente em nosso País, e muito do que foi e tem sido ensinado aos operadores de segurança pública nesta área advém de conhecimentos formulados em termos de inteligência de Estado, entendida esta como a praticada em assessoramento ao processo decisório em nível executivo governamental.
O art. 1.º, § 2.º da Lei n.º 9.883/1999 que institui o Sistema Brasileiro de Inteligência e cria a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN define inteligência nos seguintes termos:
?§ 2.º Para os efeitos de aplicação desta Lei, entende-se como inteligência a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado.?
O Departamento de Polícia Federal – DPF integra o Sisbin, através da Diretoria de Inteligência Policial – DIP, que integra o seu Conselho Consultivo. No Subsistema de Inteligência de Segurança Pública, no seu Conselho Especial, também é representado pela DIP/DPF.
Houve um hiato na atividade de inteligência do Estado com a extinção do SNI – Serviço Nacional de Informações, no período Collor e a criação do Sisbin e posterior edição do seu decreto regulamentador, o Decreto n.º 4.376/2002. Apesar da extinção prematura do SNI, foi criada a Secretaria de Assuntos Estratégicos SAE, com atribuições repartidas entre o Departamento de Inteligência, o Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Recursos Humanos CEFARH e Agências Regionais.
O viés de inteligência policial e não apenas de inteligência de Estado sofreu alguns tropeços como o papel até recentemente desempenhado pelas polícias brasileiras durante a época da ditadura, em que a noção de inteligência, com frágil perspectiva ética, fugiu do seu leito natural de obtenção de informações em nível estratégico decisório, voltada para o combate ao crime organizado.
Anota JOANISVAL GONÇALVES (2005):
?De fato, é difícil discordar da relevância da atividade de inteligência na defesa do Estado e da sociedade. Entretanto, evidencia-se o grande dilema sobre o papel da inteligência em regimes democráticos: como conciliar a tensão entre a necessidade premente do segredo na atividade de inteligência e a transparência das atividades estatais, essencial em uma democracia?(1) Associada a essa questão, outra preocupação surge, sobretudo nas sociedades democráticas que viveram, em passado recente, períodos autoritários: como garantir que os órgãos de Inteligência desenvolvam suas atividades de maneira consentânea com os princípios democráticos, evitando abusos e arbitrariedades contra essa ordem democrática e contra os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos(2)?
A maneira como determinada sociedade lida com o dilema transparência versus secretismo, em termos de procedimentos e atribuições dos serviços de Inteligência, é um indicador do grau de desenvolvimento da democracia nessa sociedade(3)?.
A escola tradicional de Inteligência alterou seus paradigmas, no campo policial, a partir das novas necessidades de obtenção e tratamento de dados voltados não mais para a formação pura e simples de dossiês (?consta que?) contra supostos inimigos do Estado ou relacionados às atividades de interesse dos governantes. A moderna escola de inteligência busca a satisfação intransigente das necessidades do povo brasileiro, no campo estratégico, decisório de políticas públicas do Estado e de segurança pública.
Para ROBSON GONÇALVES(4):
?O Estado é, em sua essência, cercado pelo secreto, faz parte das ações de governo, da manutenção da soberania e da obtenção de vantagens estratégicas para o país esse manto de proteção às informações ditas de ?segurança nacional? e a busca por informações que possam revelar ameaças ou oportunidades ao País. Desta forma, o Estado não pode prescindir dos serviços de Inteligência, pois estes produzem o conhecimento necessário à tomada de decisões e trabalham na proteção destas informações, impedindo que elementos de Inteligência adversos comprometam os interesses nacionais.
A natureza secreta das atividades de Inteligência permite que muitas vezes sua missão seja desvirtuada. Estados totalitários utilizam-se das ferramentas de Inteligência, dos conhecimentos obtidos e dos cenários projetados para ?jogos de poder? e para auferir vantagens pessoais para seus governantes. Nas democracias, mecanismos de controle são criados para impedir o uso político dos serviços de Inteligência, porém nem sempre estes controles são efetivos e a frágil barreira ética que impede seu mau uso é constantemente rompida.?
Essa nova acepção de inteligência policial, na área de segurança pública, deve estar voltada, especialmente, para a produção de prova criminal, a ser utilizada em ação penal cujo caráter é público. Deve-se desfazer da antiga mística do ?secretismo? que envolvia as ações de inteligência tradicionais. Não que esse fenômeno deva ser de todo ignorado, mas é preciso reconfigurar o papel da inteligência policial quanto ao seu papel em um contexto democrático, suas possibilidades e limites, bem como as formas de sistematização e armazenamento dos dados respectivos.
Nesse cenário, a Polícia Federal tem na prática da atividade de inteligência o carro-chefe de seu trabalho, já alicerçado em pilares democráticos e exercido nos limites legais, como o do art. 6.º da Lei n.º 9.296/96 que dispõe sobre a comunicação e acompanhemento pelo Ministério Público, nos casos de interceptação telefônica, precedida de autorização judicial fundamentada (art. 5.º).
3. A SÍNDROME DO ?SECRETISMO?
Difere a atividade de inteligência de Estado da atividade de inteligência policial. Enquanto a primeira prima pelo assessoramento das autoridades de Governo, no processo decisório, a segunda busca a produção de provas da materialidade e da autoria de crimes.
A Inteligência Policial é voltada para a produção de conhecimentos a serem utilizados em ações e estratégias de polícia judiciária, com escopo de identificar a estrutura e áreas de interesse da criminalidade organizada, por exemplo.
Como qualquer outro organismo da mesma natureza, a Polícia Federal, por meio de sua atividade investigativa ou administrativa, tem acesso a uma gama enorme de informações relacionadas à área criminal e outras afins.
Em que pese o DPF de fazer parte do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e ter em vigor normas relacionadas ao exercício das tarefas de inteligência, observa-se, que, em termos de cultura organizacional, o ?secretismo? ainda vige entre os principais operadores das unidades que trabalham dados mais sensíveis de inteligência policial, a ponto de impedir o compartilhamento destes, inclusive pelos próprios pares (e ressalvados, por certo, os conceitos de competência formal e necessidade de conhecimento).
Com raríssimas exceções, cada unidade guarda para si o conhecimento obtido/produzido, como se aquela fonte de poder (informação) fosse garantia de algum privilégio especial que conceda ao seu detentor algo mais que a capacidade de fornecer à Justiça provas contra criminosos.
Um outro problema está no fato de que, mesmo que se quisesse, seria difícil aos interessados no compartilhamento dos dados pôr em prática tal expediente valendo-se de canais formalmente estabelecidos, eis que os mesmos simplesmente inexistem ou, quando existem, são praticamente inoperantes.
Há bancos de dados institucionais da Polícia Civil, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Militar, Exército, Marinha, Aeronáutica, ABIN, Detran, bancos de dados policiais das delegacias especializadas em lavagem de dinheiro, imigração ilegal, assalto a banco e, ainda, os não-policiais como os da Receita Federal, Dataprev/INSS, CNIS, mas os setores responsáveis pelo gerenciamento dos dados respectivos não interagem, gerando uma enorme quantidade de dados perdidos e pouco trabalhados. Outro fator preocupante é a perda do conhecimento quando o detentor do banco de dados não providencia uma interface amigável de comunicação com outros cadastros e quando um policial interessado monta sua própria base de dados, com dedicação própria exclusiva e amor ao que faz, na ausência da iniciativa governamental, sem que o Estado se preocupe com a sua continuidade.
Mas é possível vislumbrar iniciativas muito oportunas que tentam mudar o rumo sombrio que se aproximava.
O novo passaporte brasileiro permitirá a disponibilização de um banco de informações nacional com os dados principais dos usuários de transporte aéreo internacional, em trânsito no país. Com nova roupagem, permitirá o registro imediato, em sistema informatizado, da entrada e saída de brasileiros e estrangeiros do território nacional, além de registrar, por código de barras bidimensional, a fotografia do passaporte.
Este documento, na cor azul, com previsão de confecção nos meados do ano de 2006, terá 16 itens de segurança: código de barras bidimensional, fundo com microletras, fundo com impressão íris, fundo com impressão invisível, impressão intaglio com imagem latente, laminado de segurança – proteção dos dados, marca d?água posicionada mould made, papel com fibras visíveis e invisíveis, papel com fio de segurança, papel reativo a produtos químicos, tintas sensíveis à abrasão e a solventes, fio de costura luminescente bicolor, perfuração cônica a laser, costura das páginas com arremate, dentre outras) que atendem às normas internacionais estabelecidas pela organização de Aviação Civil Internacional (ICAO – International Civil Aviation Organization), agência ligada às Nações Unidas.
Na reunião da ENCLA 2006 -Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro e de Recuperação de Ativos, realizada na cidade de Vitória/ES nos dias 08 a 11 de dezembro de 2005, foram traçadas metas a serem cumpridas justamente no tocante à criação e consulta de base de dados intergovernamentais. Citamos as seguintes metas:
– elaborar documento que regulamente o acesso dos Ministérios Públicos Estaduais às informações protegidas por sigilo fiscal;
– apresentar relatório sobre a possibilidade de informatizar o acesso do Poder Judiciário, do Ministério Público Federal e do COAF às informações da Secretaria da Receita Federal;
– propor medidas para aperfeiçoar a proteção de informações sigilosas;
– elaborar projeto para aprimorar a cooperação jurídica internacional nas áreas de fronteira;
– implantar sistema unificado e nacional de cadastramento e alienação de bens, direitos e valores sujeitos a constrição judicial, até sua final destinação;
– elaborar anteprojeto de lei complementar para incluir no art. 198 do Código Tributário Nacional o acesso a informações fiscais pela autoridade policial, em procedimento de investigação instaurado;
– regulamentar a Lei de Registros Públicos para fins de integração e uniformização de bases de dados;
– obter acesso integrado aos dados das Juntas Comerciais para os membros do GGI-LD;
– recriar base de dados de saída e entrada de brasileiros do território nacional;
– obter do Ministério das Comunicações e da ANATEL a elaboração de cadastro nacional de assinantes de telefonia fixa e móvel e de Internet;
– completar a primeira fase da integração do acesso ao conteúdo das bases de dados patrimoniais, incluindo, pelo menos, as bases de veículos terrestres, aeronaves e embarcações.
Portanto, ainda há possibilidade de se reverter a restrição de acesso ao manancial de informações de inestimável valor para a atividade investigatória da Polícia Federal, desde que sejam revistos os métodos de gestão do conhecimento capazes de organizar e sistematizar um fluxo pelo qual as informações possam não apenas chegar a todos os que tenham interesse por elas, mas estar disponíveis para consulta e uso quando for o caso.
Reconheça-se, por justiça, que esse é um problema que, no Brasil, perpassa todo o sistema de segurança pública, cujas polícias encontram-se, no geral, e de imediato, mais preocupadas em resolver o crônico problema de sucateamento e baixa remuneração de que são vítimas, não tendo nem mesmo tempo para produzir, de modo aceitável, conhecimento passível de armazenagem e utilização.
4. CONCLUSÃO
Como bem assevera o emérito professor e Delegado de Polícia Civil CELSO FERRO:
?A sobrevivência das organizações contemporâneas depende cada vez mais da capacidade de se construir um modelo de gestão do conhecimento, com estratégia, estrutura, decisão e identidade, apto a responder a um contexto cada vez mais complexo e instável da sociedade.?
É incontestável e premente a maior interação entre os órgãos internos do Departamento de Polícia Federal, outros órgãos policiais e de segurança do Estado, com a mitigação da exacerbada compartimentação, com a comunicação em tempo real de possíveis ameaças ao Estado e neutralização de ações criminosas.
Ainda é recente, nas nossas memórias, o atentado terrorista do World Trade Center, em Nova Iorque, referido no meio policial especializado como ?nine-eleven?, debitado à falta de comunicação do FBI (Federal Bureau of Investigation) com o Serviço de Imigração e CIA (Central Intelligence Agency), quanto à presença de terroristas em solo norte-americano e seus treinamentos em escolas de aviação, arquitetados sob o codinome de ?Projeto Bojinka?. Obviamente, além da falha de difusão, é possível que o poder ofensivo das células terroristas tenha sido subestimado(5) .
É pela quebra do secretismo oficial entre as próprias agências intergovernamentais, em sentido amplo, mediante efetiva cooperação, que poderiam e podem ser suplantadas e implodidas as bases do crime organizado e das organizações terroristas, minimizando-se perdas e maximizando-se as ações dos órgãos de segurança pública.
Notas:
(1) Although secrecy is a necessary condition of the intelligence services? work, intelligence in a liberal democratic state needs to work within the context of the rule of law, checks and balances, and clear lines of responsibility. Democratic accountability, therefore, identifies the propriety and determines the efficacy of the services under these parameters.? Born [2004]: 4.
(2) Thomas Bruneau. ?Intelligence and Democratization: the Challenge of Control in New Democracies?. The Center for Civil-Military Relations Naval Postgraduate School, Monterey California Occasional Paper # 5 [March, 2000]: pp. 15-16.
(3) Peter Gill. Policing Politics: Security and the Liberal Democratic State [London: Frank Cass, 1994].
(4) http://www.senado.gov.br/sf/senado/seseg/doc/ ArtigoRobson1.pdf
(5) http://www.americanfreepress.net/Mideast/ CIAKnew.htm
Rômulo Fisch de Berrêdo Menezes e Rodrigo Carneiro Gomes são delegados de Polícia Federal, com atuação no combate ao crime organizado. Pós-graduandos em Segurança Pública e Defesa Social.
