Furto de uma carteira (R$ 80,00), de uma faca e de cadeados (R$ 86,00), de um pacote de arroz, de um alicate, de um violão, de um cobertor, de uma camiseta, de uma jaqueta etc.: em todos esses casos o STF já reconheceu o princípio da insignificância (Folha de S. Paulo de 21.03.09, p. C1).
O chocante não é o fato de todos os Ministros desta Corte já terem reconhecido o princípio (sobretudo a partir do famoso HC 84.412, relatado pelo Min. Celso de Mello), não é isso, o chocante é ver como boa parcela da magistratura brasileira continua ignorando a sua força científica, cogente e normativa.
São fatos banais, bagatelares, que jamais deveriam estar tomando o tempo dos juízes e promotores. Por que é preciso chegar ao STF para ver admitido o princípio da insignificância?
Por vários motivos. Mas o principal é o seguinte: o princípio da insignificância não está previsto expressamente na lei brasileira (salvo no Código Penal militar). E ainda existem muitos juízes que são extremamente legalistas (ou positivistas-legalistas). A formação jurídica no nosso país continua (em geral) vinculada à doutrina do século XIX, isto é, ao nascimento do Estado moderno (burguês-liberal).
Nossas faculdades, em regra, apegadas que são à velha metodologia legalista, só ensinam os códigos e as leis. Em outras palavras, ensinam um modelo de Direito totalmente ultrapassado.
O juiz (salvo exceções) sai dessas faculdades com a cabeça totalmente positivista-legalista. Não domina com absoluta segurança (ou não sabe absolutamente nada sobre) nenhum dos três modelos de direito sucessivos, que são: o constitucionalista (que nasce simbolicamente com os julgamentos de Nuremberg, em 1945), o internacional (nascido no Brasil de forma indiscutível no dia 3/12/08, por força da jurisprudência do STF – RE 466.343-SP e HC 87.585-TO) e o global (que conta com vários tribunais: TJI, TPI e Tribunais ad hoc).
Quando aprende algo sobre esses novos modelos, na prática, tem receio de contrariar a jurisprudência dos seus tribunais locais. Conclusão: cumprem o papel de correia de transmissão do velho positivismo legalismo.
O formalismo, o comodismo, o ensino jurídico no Brasil, a metodologia dos concursos públicos para a magistratura (também aferrada ao formalismo legalista de Kelsen, Ihering e Savigny), tudo isso vem contribuindo decisivamente para a formação do juiz.
Quando lhe aparece um caso de subtração de um queijo, de um frango, de biscoitos, de um xampu, de rolos de papel higiênico etc., ele tende a seguir a jurisprudência dos tribunais locais e reconhecer o crime de furto, aplicando a pena de reclusão de um a quatro anos.
Esse modelo de juiz não acompanhou toda a evolução do Direito penal ocorrida de 1970 para frente. Foi nesse ano que Claus Roxin deu os últimos retoques à sua teoria da imputação objetiva, criando uma nova dimensão (normativa) na tipicidade. Nem tudo que é formalmente típico é materialmente típico.
Na atualidade, depois de Roxin, Zaffaroni etc., não há mais como deixar de compreender a tipicidade com duas dimensões: formal e material (além da subjetiva, nos crimes dolosos).
Na dimensão formal deve o juiz constatar a conduta, o resultado naturalístico, o nexo de causalidade e a adequação típica. Na dimensão material o juiz valora a conduta assim como o resultado jurídico.
A valoração da conduta tem por fundamento o critério do risco proibido/permitido, que vem da teoria da imputação objetiva de Roxin. A valoração do resultado jurídico exige do juiz a análise de seis exigências: resultado concreto, transcendental, grave, intolerável, objetivamente imputável ao risco criado e que esteja no âmbito de proteção da norma.
Como se vê, o resultado deve ser grave (ou pelo menos penalmente relevante). Nas subtrações de valores insignificantes não existe esse resultado grave. Logo, o fato é atípico (do ponto de vista material).
Nos últimos tempos temos desenvolvido tudo isso nas nossas aulas, livros e cursos. O STF tem estado atento a todas essas novidades. Que a magistratura brasileira, agora, assuma sua responsabilidade (e que passe a assimilar todas as inovações do Direito penal).
O CNJ está, neste momento, desenvolvendo novas regras para os concursos públicos dos juízes. Quer o referido Conselho que o juiz se humanize, que tenha noções de filosofia etc. Nada mais oportuno que essa iniciativa do CNJ.
Em muitas ocasiões temos a sensação de que o magistrado não vive neste planeta ou não vive a época contemporânea. Só uma viagem no túnel do tempo, às vezes, explica algumas decisões da magistratura brasileira atual. Casos de escassíssima relevância precisam chegar na última instância do Poder Judiciário (STF) para serem eliminados do Direito penal. Que incrível isso!
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.blogdolfg.com.br