Desmandos, incompetência e desrespeito às leis vigentes
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é clara e precisa, ?todo homem tem direito à vida, à liberdade, à propriedade e à segurança pessoal? (ONU/1948, art. iii).
O Estado têm a criminalidade que deseja e a que não deseja, se permitir, se for conivente ou incapaz no seu dever de prestar segurança pública à sociedade. Quase o mesmo que o dito popular ?a sociedade têm o governo que deseja?, quando não exige seus direitos.
O discurso de segurança pública faz parte de um ?jogo político? que integra as campanhas eleitorais. Os atentados ocorridos em São Paulo e agora mais recentemente na cidade do Rio de Janeiro, como as invasões de terras rurais, é só o começo de dias piores que estão por vir, se a questão da segurança pública não for tratada com vontade política, mais responsabilidade e competência.
Indiscutivelmente a segurança pública brasileira encontra-se em crise, no tocante a proteção dos direitos da cidadania, falência declarada da gestão de prevenção e repressão à criminalidade, ante a ineficiência do setor estatal; por mais que as autoridades públicas tentem nos convencer o contrário.
Na doutrina penal contemporânea são várias as teorias que orientam cientificamente os programas de política criminal e penitenciária e os estudos sobre as espécies de delitos. A criminologia explica o atual estágio no Brasil da delinqüência organizada, através da teoria estrutural-funcionalista da anomia, desenvolvida por E. Durkein e Robert Merton, que significa o desrespeito às normas vigentes ex. código penal, etc. seja pela sociedade ?extra? ou ?intra murus?. Nas prisões impera a ?lei do silêncio? ou o ?código do recluso? que prevalece sobre à própria Constituição. Anomia é a não aceitação de um rol social e a não aceitação de imposição de regras de conduta, o que conduz a um verdadeiro mal-estar social, é a própria insatisfação generalizada, onde a ?banda criminosa? e organizações ilícitas ex. milícias, esquadrão da morte, etc. – institucionalizam a desordem e a insegurança pública.
Trata-se de um fenômeno na estrutura social, de reação com tendência a rebeldia, produzindo efeito estimulante ao comportamento criminal que busca êxito econômico via caminhos não legítimos ou meios alternativos para a ascensão social.
Quando o Estado não promove condições sócio-culturais fundamentais para a vida com dignidade, origina-se o desrespeito as regras impostas, gerando anomia, crise na discrepância entre normas vigentes e não cumpridas, onde haverá um grupo não apático inconformado com a situação, e passa a agir contra os meios e estruturas legais do Estado, para ter acesso a bens de consumo.
Para a efetivação do Estado Democrático de Direito, primeiramente é necessário assegurar o Estado Social, pois a prevenção do delito corresponde as formas de viabilização das condições sociais básicas ou mínimas; e a repressão criminal corresponde a função própria do direito penal, através da estrutura da administração de justiça, da capacidade dos órgãos de segurança pública e a correta aplicação da lei.
No crime organizado, os traficantes de drogas que dominam as favelas no Rio de Janeiro e em São Paulo e os que chefiam e coordenam movimentos de desordem, são conhecidos pela polícia e por toda população, via mídia, por isso não podem ser consideradas organizações secretas que enfrentam o Poder Público.
A criminalidade que consta nas estatísticas oficiais do Estado representa cerca de 1% da realidade, os outros 99% são ?numerus obscurus?, as chamadas ?cifras negras? e ?douradas? que fazem parte do direito penal aparente ou do direito penal subterrâneo.
A hegemonia da classe burguesa e a ideologia penal dominante atuam em base a discursos inverídicos e não científicos, acobertados por programas de segurança pública do tipo ?lei e ordem?, mas os vulneráveis do sistema os presos – continuam sendo sempre os mesmos. Disse Jaques Leauté: ?quando a polícia lança as suas redes, não são os peixes pequenos que escapam, mas os maiores?; a miséria da criminologia é de ter sido a criminologia da miséria, posiciona a criminóloga Lola Anyiar de Castro. O direito penal foi criado para reprimir ?pobres e fracos?.
O tráfico ilícito de influência encontra-se intimamente vinculado à corrupção e esta a criminalidade organizada, uma ligação indevida que possui origem na inércia e na desestruturação dos aparatos da administração pública.
Os traficantes de drogas criam espaços e seus próprios impérios, nas grandes cidades brasileiras, onde as forças de segurança pública estatal não detêm um mínimo de poder. São espaços sem leis, tudo ?aos olhos? das autoridades, re-alimentando a subcultura, onde Estado paralelo faz enfraquecer as instituições democráticas.
A Lei n.º 10.826/03 e suas alterações, que proíbe o porte de armas de fogo e a posse de munições, é uma verdadeira ?letra morta?, nos espaços geográficos dos traficantes de drogas e nas áreas rurais invadidas pelo movimento ?sem terra?, nestes locais, por exemplo a polícia não tem acesso e por isso nada reprime, é a total impunidade e a insegurança pública incontestável.
Por certo, é necessário desarmar a população civil, mas a entrega de armas voluntárias não reflete a diminuição da criminalidade brasileira. Se um dos motivos foi evitar acidentes domésticos, estes não representam o problema da delinqüência, como homicídios, assaltos, tráfico de drogas, etc. -. As ?gangues? e quadrilhas não se desarmaram, pelo contrário se armam a cada dia, nenhum delinqüente foi visto devolvendo armas à polícia, refiro-me aos traficantes de drogas e até aos jovens infratores entre 16 e 17 anos de idade, muitos deles autores de crimes cruéis e hediondos.
São 16.866 km de fronteira seca entre o Brasil e os países do continente latino-americano, além dos portos, aeroportos oficiais e clandestinos, corredor do narcotráfico internacional e do contrabando de material bélico. É fraca a presença do Estado nas zonas limítrofes do território nacional, pela carência de recursos humanos e equipamentos adequados para reprimir a delinqüência.
Cabe às polícias judiciárias – civil e federal – e as forças armadas coibirem delitos nos termos do Código de Processo Penal Comum e Militar (arts. 4.º e 7.º, respectivamente), à luz da Constituição e da legislação vigente. A Polícia Militar como força auxiliar do Exército (art. 144 § 6.º CF) possui dever de prevenir ilícitos contra a ordem e segurança nacional e o crime organizado (Lei n.º 9.034/95).
A legislação pátria é clara quanto às missões do Exercito, desde o Império a Constituição de 1824, no art. 148 estabelecia competência ao Poder Executivo para empregar a Força Armada de mar e de terra, como parecer conveniente à segurança (interna); nas Cartas Magnas de 1891, 1924 e de 1988, as Forças Armadas destinvam-se à manutenção das leis e da ordem, como missão interna e secundária (Lei Complementar n.º 97/99 – art. 15), em nome da incolumidade das pessoas e do patrimônio. A titulo de menção, cito o Regulamento para o Tráfego Marítimo nacional (Dec. n.º 87.648, de 24 de setembro de 1982, alterado pelo Decreto n.º 511, de 27 de abril de 1992), onde diz, não compete a Polícia Naval a execução de ações preventivas e repressivas da alçada de outros órgãos, sem prejuízo da colaboração eventual, quando solicitada (parágrafo 1.º do art. 269).
Em situações especiais que exigiram a prevenção e repressão à criminalidade, o Exército brasileiro atuou em nome da ordem pública em respeito aos direitos básicos do cidadão, na defesa das instituições democráticas; cito como exemplo, quando a fazenda do Presidente Fernando Henrique Cardoso foi invadida por integrantes do MST; as incursões do Exército nos morros e favelas do Rio de Janeiro; já em época do carnaval, no Rio de Janeiro houve uso das tropas do Exército; também durante a ECO-92; na UNCTAD, São Paulo em 2004; agora no PAN 2007; entre outras tantas situações. Para tal desiderato, é preciso apenas vontade e determinação política, ademais do que está regulamentado pela Constituição federal (arts. 136 usque 141 CF), cabe ao Chefe do Executivo ouvido o Conselho de Defesa Nacional e o Conselho da República, bem como pode até ser declarada intervenção federal, em unidade de federação, inclusive com a interposta de ação pelo Procurador-Geral da República perante o Supremo Tribunal Federal.
Os órgãos de segurança do Estado possuem o dever de prender em flagrante delito (art. 302 CPP) aqueles que estiver cometendo crime, na omissão cabe ao particular agir (art.301 CPP).
O Estado através dos órgãos competentes punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais, constituindo crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados civis, ex. comando e tráfico de drogas, etc. (incisos XLI e XLIV art. 5.º CF).
A Segurança Pública é dever do Estado (art. 144 CF); a Lei n.º 7.170/83 define os crimes contra a Segurança Nacional, toda ação de grupo armado nacional ou com conexão estrangeira tráfico internacional de drogas – que lese a integridade territorial, o regime democrático e a soberania do país; o Protocolo adicional II (de 1978) aos Convênios de Genebra de 1949, relativo a proteção das vítimas de conflitos armados sem caráter internacional especifica que quando grupos armados organizados permanentes geram violência, incumbe aos governos manter e restabelecer a lei e a ordem, por todos os meios.
Para as Nações Unidas, vítimas de crime são todas as pessoas que individual ou coletivamente, tenham sofrido alguma espécie de danos, lesões físicas ou mentais, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, assim dispõe o item 18, letra b, da Declaração sobre os Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos e do Abuso de Poder.
De outro lado, deixar de praticar ato de ofício para satisfazer interesse político – ou sentimento pessoal configura crime de prevaricação (art. 319 CP) sujeitando responsabilidade aos servidores, funcionários e autoridades públicas. Os desrespeitos às leis penais, à Constituição federal, aos acordos de cooperação e convenções internacionais de repressão ao tráfico de entorpecentes, também é anomia e insegurança jurídica. As Nações Unidas não admitem qualquer espécie de impunidade, abuso de Poder, conivência entre criminosos e autoridades públicas, ou a inércia do Estado na prevenção ou repressão da criminalidade; portanto os Direitos Humanos não servem somente para proteger presos, mas para realizar justiça, manter a ordem e a paz social.
As ?letras mortas? no direito pátrio geram a insegurança pública, restando as autoridades processar e condenar os responsáveis por estes inaceitáveis crimes que atentam contra a soberania nacional e colocam em risco a credibilidade do Estado de seus órgãos e poderes.
Devemos pensar na possibilidade de criar uma Polícia Militar Nacional única, com atribuições de prevenção, em substituição as Polícias Militares dos Estados, e uma Polícia Judiciária Nacional, também única, com atribuições de repressão e investigação, apenas dividida ante a natureza dos crimes e a competência de julgamentos pela Justiça Estadual ou Federal, facilitando desta forma as cooperações interestaduais e internacionais de combate ao crime comum, convencional e organizado, inclusive com um único orçamento estabelecendo critérios nacionais e regionais de carreiras e salários. Principalmente para desvincular a questão da criminalidade das de políticas eleitoreiras e interesses de cada governo das unidades da federação, facilitando desta forma o treinamento e a capacitação dos agentes de segurança pública de maneira uniforme e competente (Lei nº 10.446/2002).
Indubitavelmente, a criminalidade vincula-se as questões sociais, aos conflitos agrários, à violência no campo e nas favelas, onde as Nações Unidas em seu Programa para Assentamento Humano (Habitat/ ONU), conclui pela urgente necessidade de urbanização das favelas e dos assentamentos rurais. A pobreza deve ser tratada como assunto prioritário do Estado, por seus órgãos executivos; já as invasões de terras e o tráfico de drogas é caso de Polícia e de Justiça Penal.
Não podemos admitir uma ?terra sem lei? e uma Justiça de ?mãos atadas e olhos fechados?, a sua espada é a força que faz imperar a lei, a ordem e a segurança pública nacional.
Somos por uma urgente reforma global na estrutura da Segurança Pública do Brasil, ante a necessidade de uma polícia capaz, integrada e inteligente, participando com maior responsabilidade da política criminal e penitenciária do país, se é que existe tal política.
Cândido Furtado Maia Neto é pós-doutor em Direito. Mestre em Ciências Penais. Especialista em Direitos Humanos (Consultor Internacional das Nações Unidas MINUGUA 1995-96). Ex-Secretário de Justiça e Segurança Pública do Ministério da Justiça (1989/90). Professor Universitário de Pós-Graduação. Membro do Ministério Público do Paraná, Promotor de Justiça de Foz do Iguaçu.
Autor dos livros: Código de Direitos Humanos para a Justiça Criminal Brasileira. Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2003. O Promotor de Justiça e os Direitos Humanos, ed. Juruá, Curitiba, 2003; Direitos Humanos do Preso?, ed. Forense, Rio de Janeiro, 1998; e de vários artigos jurídicos publicados em jornais e revistas especializadas.
E-mail: candidomaia@uol.com.br.