Vive o País mais outro período complicado de sua história. Desta feita, em razão do Congresso Nacional, cuja composição atual é das mais apequenadas de todo o período republicano.
Na inércia de legislar sobre temas que interessam à ordem jurídica, ao próprio Congresso ou aos seus eventuais ocupantes ? como é o caso da necessária e já tardia reforma política ? o Poder Judiciário vê-se na contingência de, mediante interpretação do sistema legal vigente, fixar normas de conduta, com força obrigatória, para suprir a omissão do legislativo; regular a atividade do Congresso e dos partidos políticos bem como garantir a lisura do resultado das eleições (Constituição Federal, art. 121, § 3.º; art 92, § 2.º; art 96, t; Código Eleitoral, ad. N.º 23, 1; TSE, Reg. Interno, art. 8.º, ?j?).
Já se disse repetidas vezes que o Congresso jamais votaria leis que pudessem, de uma forma ou outra, alterar o sistema pelo qual foram eleitos ou diminuir seus privilégios ou dos seus integrantes- Com efeito, as alterações feitas em nossa legislação eleitoral ou partidária, até agora, só foram votadas ou seriam aprovadas quando em interesse próprio ou do partido ao qual pertencem os congressistas. Dora Kramer, articulista do jornal o ?Estado de S.Paulo?, já na edição de 10 de março de 2005, escrevia… ?a reforma política que os partidos se propõem a fazer… está sendo construída á imagem e semelhança do velho ditado: quem parte e reparte sempre fica com a melhor parte?.
Entre os maiores problemas derivados da composição dos recentes congressos e últimas eleições, contam-se as vexatórias trocas de partido pelos eleitos por uma legenda partidária e assim diplomados e empossados (o Código Eleitoral determina que no diploma expedido conste a legenda ? ad. N.º 215, parágrafo único). Em todas estas mudanças de agremiações partidárias somente se viu o interesse pessoal e as conveniências políticas , inclusive do eleito, estas incluindo as benesses distribuídas por quem detém o Poder no momento.
O Código Eleitoral brasileiro (Lei n.º 4.737/65, ad. N.º 84) adota o sistema proporcional para as casas do Poder Legislativo. As leis que se seguiram não mudaram este sistema (Lei 9.504/97 e outras). A Constituição Federal de 1988 referendou este sistema proporcional, no art.45, afastando o sistema do voto distrital, misto, ou puro.
Os agentes principais da política e das eleições são os partidos políticos, reafirmados em sua função essencial pelo art 17 da CF. São regidos pela chamada LOPP ? Lei Orgânica dos Partidos Políticos, n.º 9.096/95. São os partidos que, através de suas convenções partidárias, indicam os candidatos, figurando eles em listas abertas. A filiação partidária é obrigatória, nos termos do art. 18 do Código Eleitoral. Por isso não há candidato avulso: somente via partido político (CF art.14, § 3.º, inciso V; Código Eleitoral, art.87). É a agremiação que dá legenda ao candidato; pode-se votar só no partido (voto de legenda); mas ainda que se premie um determinado candidato, o voto é contado para a legenda.
Os partidos é que elegem um determinado número de congressistas, deputados ou vereadores, segundo o quociente eleitoral. Consideram-se eleitos os candidatos na ordem dos votos individuais recebidos, mas que são contados ao partido.
Questões a desafiar melhor solução residem nestas criticas: o eleitor vota em ?A?, mas acaba por eleger ?B?, que teve mais votos e foi incluído no quociente partidário: ou, pelas ?sobras?, pode até eleger candidato de outro partido. Ou ainda: não tendo conseguido votação pessoal suficiente, elege-se com o voto dos demais. Mas apesar destes pecadilhos, o processo eleitoral não se afasta do sistema da legenda.
Na verdade, até se pode indagar: a quem pertence o mandato eletivo? Poder-se-ia sustentar que pertence ao povo, face ao ditame do art 1.º, parágrafo único da Constituição Federal, pois o poder pertence ao povo, que o exerce através de seus representantes (idêntica disposição encontra-se no art. 2.º do Código Eleitoral). Neste caso, o eleito seria apenas um mandatário; logo, não titular do direito).
De outro lado, considerando-se a ?pessoalidade? do voto, que é conferido pelo eleitor geralmente ?intuitu personae?, vale dizer, dos méritos, retórica , ou atividade político-social do candidato, até também se poderia entender que o mandato é uma forma de propriedade do eleito. Aqui se pode cogitar da situação do candidato que isoladamente obteve maior número de votos do que o quociente eleitoral. O argumento é reforçado pela constatação prática de que no Brasil os partidos políticos são fracos, e a grande parcela dos eleitores votam efetivamente na pessoa, no nome, sem maiores cogitações á agremiação partidária (Caso Prona ? Enéas).
No entanto, o mandato do eleito pertence, na realidade, ao partido pelo qual ele se registrou candidato (e só se é candidato através de um partido, conforme ? art 87 parágrafo único, do Código Eleitoral, antes referido). Parece lógico, portanto, que o eleito pela legenda de um partido esteja obrigado, moral e legalmente, a permanecer na agremiação que lhe concedeu legenda. Aliás, fidelidade aos princípios partidos é determinada pelos arts. 23 a 26 da Lei Orgânica, referendados pelo art. 17 § 1.º do Código Eleitoral.
Com a promulgação da Constituição de 1988 muito se discutiu a respeito da perda do mandato eletivo pela mudança imotivada de partido político, durante o curso do mandato. Isto porque não foi repetido o disposto no art 152, § 5.º da Emenda 1/69, bem como o constante do art. 35, V, da mesma Emenda, as quais determinavam a referida sanção. Em 1985, com a Emenda 25/85, ficaram revogados tais dispositivos. A sanção foi abolida. Assim, deixou de constar da Carta vigente. Referências da época dizem que a perda do mandato seria um ?entulho autoritário? a ser removido. Todavia, pelo prisma da Ética, a omissão ? hoje se verifica a sobejo ? não era nada recomendável. Sustentou-se, na época, que a perda do mandato somente seria compatível com o sistema de uno-partidarismo, ou partido oficial. Mas, com a permanência do critério de legenda, e em existindo vários partidos de várias colorações e filosofias, este argumento parece vazio.
Alguns doutrinadores e magistrados entendem que a perda do mandato outorgado pelas urnas está implicitamente vedado pela redação do art. 15 da Constituição Federal. Consideram ser uma forma de cassação de direitos políticos; a hipótese não estaria elencada nos seus 5 (cinco) incisos. Contudo, é preciso lembrar as circunstâncias peculiares em que foi votada a Carta de 1988. E a obrigação de obediência à disciplina partidária, objeto do art. 15, V da Lei Orgânica, mesmo com origem constitucional (ad. 17, § 1.º, in fine), não lhes autoriza a sanção da perda do mandato.
Este autor sempre teve o entendimento, mercê de sua experiência no TRE/PR que mesmo sem legislação expressa, de índole constitucional ou ordinária, a troca de partido não justificada, acarretaria a perda do mandato. E isto decorreria do próprio sistema da legislação vigente. Este entendimento foi formado mesmo contra decisões do STF e TSE (Mandado de Segurança n.º 20.916/DE, relator Min. Sepúlveda Pertence – 1989; TSE -Acórdão n.º 10.988, rec. 8.527/SP, rei. Min. Roberto Rosas; STF ? 11.075, rec. 8.535/SP, relator Min. Célio Borja (vencido). Esta tese foi manifestada em texto publicado pelo caderno ?Direito e Justiça? do jornal ?O Estado do Paraná?, edição de 19/6/2005, e em outras ocasiões em que se discutiu o tema, dentre elas palestra no Instituto dos Advogados do Brasil, em data de 22 de maio de 2006, noticiada pela Folha do Instituto dos Advogados Brasileiros, de Maio/ Junho de 2006.
Julgando-se prejudicado pela desfiliação de alguns eleitos por sua legenda ao Congresso Nacional, o então PFL ? Partido da Frente Liberal, formulou expressa consulta ao Tribunal Superior Eleitoral, autuada sob n.º 1.398, Classe 5.ª, do Distrito Federal, em março de 2000. Após adequadas considerações, indagou:
”Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporciona!, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?”
Sob a presidência do Min. Marco Aurélio, relatou a consulta o Min. César Asfor Rocha. A consulta foi respondida afirmativamente. Diz a ementa:
?Consulta. Eleições proporcionais. Candidato Eleito. Cancelamento de filiação. Transferência de partido. Vaga. Agremiação. Resposta afirmativa?.
Colhem-se do voto do ministro relator algumas observações que são dignas de registro. Dentre elas:
O candidato eleito, se teria tornado senhor e possuidor de uma parcela da soberania popular, não apenas transformando-a em propriedade sua, porém mesmo sobre ela podendo exercer, à moda de uma prerrogativa privatística, todos os poderes inerentes ao seu domínio, inclusive o dele dispor?;
?É que o raciocínio jurídico segundo o qual o que não é proibido é permitido, somente tem incidência no domínio do Direito Privado, onde as relações são regidas pela denominada licitude implícita, o contrário ocorrendo no domínio do Direito Público, como bem demonstrou o eminente professor Geraldo Ataliba (Comentários ao CTN, Rio de Janeiro, Forense, 1982) , assinalando que, nesse campo, o que não é previsto é proibido?;
Ao meu sentir, o mandato parlamentar pertence, realmente, ao Partido Político, pois é à sua legenda que são atribuídos os votos dos eleitores, devendo-se entender como indevida (e mesmo ilegítima) a afirmação de que o mandato pertence ao eleito, inclusive porque toda a condução ideológica, estratégica, propagandística e financeira é encargo do Partido Político, sob a vigilância da Justiça Eleitoral, á qual deve prestar contas (art. 17, 111, da CF)?.
Acompanharam o relator, aduzindo outros mais argumentos, os ministros Marco Aurélio, Carlos Ayres Britto, José Delgado e Caputo Bastos. Votou vencido o Min. Marcelo Ribeiro, pelo fundamento da necessidade de legislação expressa.
Merece especial registro o voto do Min. Cesar Peluso, pela excelência de sua argumentação.
Na ausência de lei, cabia ao Tribunal Superior Eleitoral disciplinar o processo de perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária. Fê-lo nos termos da Resolução n.º 22.610, de 25 de outubro de 2007 , com a seguinte justificativa:
?O TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, no uso das atribuições que lhe confere o art. 23, XVIII, do Código Eleitoral, e na observância do que decidiu o Supremo Tribunal Federal nos Mandados de Segurança n.º 26.602, 22.603 e 26.604, resolve disciplinar o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de desfiliação partidária, nos termos que dispôs.
Na ausência de lei fixando datas; e considerando a necessidade de se fixar um termo inicial a partir do qual a interpretação do sistema legal existente, constante da resposta à consulta, seria aplicável aos casos concretos; e que somente após a decisão definitiva do TSE é que a interpretação legislativa tornou-se impositiva (CF, art. 121, § 3.º) determinou-se a data de 27 de março de 2007, para mandatários eleitos sistema proporcional, e a de 16 de outubro de 2007 quanto a eleitos pelo sistema majoritário, a partir das quais a sanção poderia ser aplicada.
Esta Resolução n.º 22.610, de natureza procedimental, tem merecido algumas observações críticas. Talvez a maior delas constaria do art. 11: ?São irrecorríveis as decisões interlocutórias do Relator, as quais poderão ser revistas no julgamento final. Do acórdão caberá, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, apenas pedido de reconsideração, sem efeito suspensivo?. A falta de previsão para recurso pode ser sentida como inconstitucional (vide art. 5.º, inciso LV da Constituição Federal). Contudo, a irrecorribilidade está albergada no art 22, parágrafo único, e 281, do Código Eleitoral.
A partir desta resolução, avolumaram-se os pedidos para retomada do mandato, pelos partidos e coligações. Deu-se legitimidade para o pedido inclusive aos suplentes, diplomados ou não, eis que o cargo também se considerava vago.
No TREJPr, pelos ilustrados votos dos juizes Munir Abagge, Auracir Azevedo de Moura Cordeiro, João Pedro Gebran Neto, e de outros eminentes membros desse colegiado, fixou-se também a tese de que o mandato é do partido. Matérias de relevância abordadas pelos citados juristas, vêem-se nos acórdãos n.º 32.706; 32.721; 32.799; 32.714 e outros. Perante o TER/PR contam-se às centenas os pedidos de retomada de vagas, nas casas legislativas sob atribuição do TERIPR (ad. 2.º da Resolução).
Em quase 20 anos, os tempos mudaram. Os ventos da moralidade estão atingindo os políticos, ainda que de modo indireto. Deve-se atribuir á mídia independente o mérito de trazer ao conhecimento público os mensalões e mensalinhos e outros que tais (devidamente comprovados, de tal sorte que muito poucos podem duvidar de sua efetiva ocorrência) e com tal conduta conquistar a opinião do povo, a resultar na moralizadora decisão do Judiciário.
A importância da decisão do TSE é notável. As conseqüências serão diversas e profícuas. Uma delas o fortalecimento dos partidos políticos. Outras a moralização das campanhas eleitorais; do exercício fiel e correto do mandato parlamentar. E que o mandato político, sendo uma delegação de poderes outorgada pelo povo, não pode ter preço ou ser comprada em troco de vantagens. Assim se deseja e espera!
Carlos Fernando Correa de Castro é conselheiro nato do IAP. Membro do IAB. Ex-juiz do TRE/PR.