Indenização por acúmulo ou desvio funcional

Por força do art. 8.º parágrafo único da CLT, o direito comum aplica-se subsidiariamento ao Direito do Trabalho, desde que a lei trabalhista seja omissa e a norma civil invocada seja compatível com os princípios do direito do trabalho. É, pois, o caso dos regramentos previstos no Código Civil e que albergam o pleito de indenização por desvio ou dupla função.

O primeiro deles é o dispositivo que assegura a restituição do prejuízo em caso de locupletação:

Art. 884: Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

Ora, não há como negar a caracterização de locupletamento nos casos em que o empregador utiliza empregado contratado para determinada função para exercer, cumulativamente ou não, outras atividades de maior complexidade e sem qualquer compensação salarial.

Locupletamento. Exercício de dupla função ou de função de maior valia. "Demonstrado o exercício pelo operário de função de maior valia, o reconhecimento judicial do direito patrimonial correlato apenas reporá o caráter sinalagmático da relação havida, afastando a indesejável figura do locupletamento ilícito. (…)." (TRT, 10.ª Região, RO 2798/99, 3.a Turma, Rel. Juiz Douglas Alencar Rodrigues. DJU: 18/10/2000)

Da mesma forma também se constitui ato ilícito a ordem patronal que exige o cumprimento de serviços alheios ao contrato, seja quando o empregado se encontra em desvio ou acúmulo de função. Nesse sentido é a regra do art. 483, "a", da CLT.

Art. 483: O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: "a": forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato;

Destarte, é inegável que o desvio funcional e a dupla função são tidos como ilícitos, na medida em que são caracterizados pela determinação unilateral do empregador e ao mesmo tempo prejudicial ao obreiro que terá que assumir responsabilidades e encargos superiores aos limites do contratado. Ao assim proceder o empregador estará exorbitando seu poder de comando (jus variandi) em flagrante abuso de direito de que trata o art. 187 do Código Civil.

Tais hipóteses caracterizam até mesmo ofensa ao art. 468 da CLT, vez que entre a função ajustada na celebração do contrato e o que lhe foi imposto posteriormente haverá sensível margem prejudicial ao trabalhador, mormente quando desacompanhada da respectiva compensação salarial.

DIFERENÇAS SALARIAIS DESVIO DE FUNÇÃO Exercendo, o autor, atividades de maior responsabilidade do que aquelas previstas para o cargo ao qual estava vinculado, faz jus ao pagamento de diferenças salariais decorrentes de desvio funcional, com reflexos, bem como a anotação em sua CTPS da função de Operador de Produção I. Recurso provido. (TRT 4.ª R. RO 01206-2002-022-04-00-2 6.ª T. Rel. Juiz Denis Marcelo de Lima Molarinho J. 05.11.2003)

Caso a desproporção ocorra desde o início do contrato, hipótese em que o empregado apesar de ser contratado para determinada função exerça outras de forma cumulativa ou outras mais complexas do que aquela ajustada, restará configurado vício volitivo por lesão de que trata o art. 157 do Código Civil:

"Art. 157: Ocorre lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta."

Com efeito, caracterizado o ato ilícito da Reclamada e o flagrante prejuízo à parte autora, advém-lhe o dever de reparar o dano nos termos dos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil, Lei 10.406/2002:

Art. 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 927 – Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Observa-se, nessa hipótese, a presença dos três elementos da responsabilidade civil: o dano material (exercício de função mais qualificada sem compensação salarial), o ato ilícito (abuso do jus variandi) e o nexo causal (dano decorrente do ato ilícito patronal).

O caráter sinalagmático e comutativo do contrato de trabalho impõe ao empregador a justa e equivalente remuneração do serviço prestado. Assim, eventual demanda da empresa para execução de outras tarefas não previstas na avença contratual do empregado constituirá risco da atividade econômica que deverá ser suportado pelo empregador:

"O caráter sinalagmático do contrato de trabalho e a norma jurídica dos arts. 2.º e 3.º da CLT impõe a retribuição pecuniária por parte do empregador pelos serviços prestados pelo trabalhador cumulativamente e diverso ao objeto da avença inicial." (TRT 9.ª Região, Acórdão 15203/99, 3.ª Turma, Relatora Juíza Rosalie Michaele Bacila Batista)

Ademais, uma vez sendo o empregado contratado para o exercício de determinada função não poderá ser submetido ao exercício de outra mais complexa ou sobreposta, sob pena de ferir-se a confiança negocial esperada pelos contratantes. Nesse sentido são emblemáticos os princípios da função social e da boa-fé objetiva que informam o direito contratual, conforme prevêem, respectivamente, os arts. 421 e 422 do Código Civil, aplicáveis ao contrato de trabalho.

Assim, em relação à prática de dupla função, o trabalhador deverá receber uma indenização equivalente ao prejuízo. Na falta de elementos precisos, o valor deverá ser arbitrado pelo juízo nos termos do art. 606, II, do CPC. É possível também aplicar analogicamente o art. 13 da Lei 6615/1978, o qual prevê um adicional de dupla função que varia de 10% a 40% para o profissional radialista. Não se olvide que a analogia é fonte de integração do direito do trabalho nos casos de lacuna da legislação específica. Observa-se ser comum o uso da analogia de uma regra profissional específica para outra, a exemplo da jornada de sobreaviso e prontidão própria dos ferroviários, art. 244, §z 1.º e 2.º, da CLT, e extensiva a outros profissionais.

Quanto ao cabimento da indenização alusiva ao desvio funcional, o TST, através da OJSDI-1 n. 125, pacificou o tema, tendo o empregado direito ao pagamento das respectivas diferenças salariais. Caso não haja quadro de carreira ou tabela salarial, o juízo deverá arbitrar um valor justo e razoável a título de indenização, nos termos do art. 606, II, do CPC.

Observa-se que nessa mesma trilha vem sendo deferido o denominado salário-substituição plasmado na nova redação da Súmula 159 do TST, cuja edição foi fruto de intepretação sistêmica da ordem jurídica, mormente a de prestígio à eqüidade e ao tratamento isonômico (art. 5.º, 8.º e 460 da CLT), bem como aos fundamentos contidos nos mencionados artigos do Código Civil.

DIFERENÇAS SALARIAIS DESVIO DE FUNÇÃO Comprovado o exercício de funções pertinentes a cargo melhor remunerado e diverso daquele no qual formalmente enquadrado, faz jus o trabalhador às diferenças salariais por desvio de função, com fundamento no princípio isonômico, segundo o qual devem ser contraprestadas de forma igualitária os empregados que desempenham funções idênticas, nos termos do art. 460 da CLT. Apelo provido. (TRT 4.ª R. RO 00325-2002-561-04-00-1 6.ª T. Rel.ª Juíza Beatriz Zoratto Sanvicente J. 05.11.2003)

O que caracterizará o desvio ou a dupla função é o desempenho de atividades que não se relacionam com o cargo contratado. A questão não é tão simples quando migrada para a prática das relações de trabalho, vez que em muitos casos o cargo contratado encerra o desempenho de uma atividade principal e outra gama de atividades acessórias que lhe são correlatas e imbricadas. Assim, por exemplo, uma secretária pode também recepcionar clientes ou atender telefonemas sem que isso configure desvio ou dupla função. Contudo, se essa empregada, a qual foi contratada como "secretária" tem como função primordial atender telefones, de forma permanente e intensa, por óbvio que se estará diante de um desvio funcional, devendo receber o salário e os benefícios atinentes à função de telefonista.

O mesmo se diga do empregado contratado como "vendedor comissionista" e que se vê surpreendido com atribuições práticas e cumulativas próprias do cargo de cobrador de créditos. Ora, aqui haverá um nítido prejuízo que deve ser reparado, vez que o permanente serviço de cobrança além de caracterizar desvio funcional obstará o recebimento de maior comissão em face da subtração de seu tempo destinado às vendas propriamente dita. Nesses casos o julgador deve aplicar até mesmo a regra de fraus legis prevista no art. 9.º da CLT.

Oportuno transcrever o regramento do recente Código do Trabalho de Portugal (Lei n.º 99/2003) sobre o tema:

Art. 151-1: O trabalhador deve, em princípio, exercer funções correspondentesà actividade para que foi contratado.

Art. 1512: A actividade contratada, ainda que descrita por remissão para categoria profissional constante de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho ou regulamento interno da empresa, compreende as funções que lhe sejam afins ou funcionalmente ligadas, para as quais o trabalhador detenha a qualificação profissional adequada e que não impliquem desvalorização profissional.

Art. 152 A determinação pelo empregador do exercício, ainda que acessório, das funções a que se refere o n.º 2 do artigo anterior, a que corresponda uma retribuição mais elevada, confere ao trabalhador o direito a esta enquanto tal exercício se mantiver.

Como se vê, o código português, em seu art. 151-1, admite o exercício de "funções que lhe sejam afins ou funcionalmente ligadas", contudo assegura, em seu art. 152, o direito à correspondente retribuição mais elevada. Trata-se de oportuna contribuição do direito comparado português em relação à integração de lacuna da legislação trabalhista pátria (art. 8.º, CLT).

O Tribunal Superior do Trabalho vem acolhendo o pedido de diferenças salariais nos casos de desvio funcional, aplicando-se nesse caso a prescrição parcial prevista no inciso I da nova redação da Súmula 275:

DESVIO DE FUNÇÃO DIFERENÇAS SALARIAIS Reconhecendo o desvio de função e deferindo as diferenças salariais decorrentes, a decisão recorrida não contrariou Súmula uniforme do TST nem violou diretamente a Constituição da República. Ao contrário, está devidamente arrimada no Enunciado 275 e na OJ n.º 125 da SBDI-1. Aplicável ao caso o Enunciado 333. Agravo conhecido e não provido. (TST AIRR 1146/2002-231-04-40.0 3.ª T. Rel. Juiz Conv. José Ronald C. Soares DJU 22.03.2005)

Consentânea com essa novel tendência jurisprudencial de acolher pedidos de indenização na forma de diferenças salariais por desvio ou acúmulo de funções, empresas de vanguarda já vêm pagando espontaneamente o respectivo adicional de dupla função:

COPEL-DUPLA FUNÇÃO-NATUREZA JURÍDICA-A Verba percebida sob o título "dupla função" tinha por fim remunerar o empregado que além de suas funções normais necessitava dirigir veículo da empresa para a realização de seu trabalho. Desta forma, não há como não se atribuir a característica de salário à parcela em epígrafe, pois nítida contraprestação a serviço prestado pelo empregado. Devidas, pois, a integração da verba, habitualmente percebida, à base de cálculo das horas extras deferidas ao autor. (TRT 9.ª R. Proc. 00302-2002-069-09-00-0 (7-2004) Rel. Juiz Sérgio Murilo Rodrigues Lemos J. 23.01.2004)

Diante de tantos argumentos jurídicos que dão guarida ao pleito de indenização por desvio e acúmulo de função, o órgão judicante não pode deixar de praticar justiça e restaurar a equidade sob o frágil e equivocado argumento de que "não há amparo legal para o pedido". Ora, o fundamento jurídico é evidente e decorre de uma exegese sistêmica e adequada dos artigos 422, 884 e 927 do Código Civil, bem como dos arts. 8.º 460 e 468 da CLT.

Foi se o tempo em que o magistrado acolhia somente os pedidos fundamentados na rigorosa interpretação literal da lei. Isso ocorreu na era do chamado Positivismo Científico do século XVIII e XIX onde, em nome da "segurança jurídica", sequer se admitia a existência de lacunas dentro do sistema jurídico. Vive-se hoje uma nova ordem jurídica em que os princípios e valores estampados na Constituição Federal e nas legislações esparsas vinculam o operador jurídico. Um tempo em que a exegese sistêmica prefere a gramatical.

José Affonso Dallegrave Neto é mestre e doutor em direito pela UFPR, advogado membro do IAB e da Academia Nacional de Direito do Trabalho, professor de Direito da FIC.

Fonte: www.apej.com.br/doutrinasselecionadas

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