Grande polêmica se formou em todos os meios da sociedade paranaense com a recente aprovação do Projeto de Lei Estadual n.º. 02/2006, que aprovou o chamado ?salário mínimo regional?, elevando substancialmente o valor mínimo a ser recebido pelos trabalhadores, em relação ao salário mínimo nacional, que atualmente é de R$ 350,00, válido já para o mês de maio/2006, ou seja, para a próxima folha de pagamento.

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A rigor, a aludida Lei Estadual não trata propriamente de ?salário mínimo?. Deveras, o que ela prevê é um piso salarial regional, conforme estabelece o art. 7.º, V, da Constituição Federal. Registre-se que a utilização do termo ?salário mínimo regional? é justificável apenas para fins de linguagem laical, contudo, juridicamente, não se pode confundir piso salarial regional com salário mínimo regional.

A principal distinção entre ambos é trazida pela própria Constituição Federal: o salário mínimo deve ser nacionalmente unificado, nos termos do que dispõe o art. 7.º, IV, ao passo que o piso salarial leva em conta a extensão e a complexidade do trabalho para fixar patamares salariais diferenciados para cada categoria, conforme estatui o art. 7.º, V, também da Constituição Federal.

A Lei Estadual em questão trouxe seis pisos salariais escalonados, conforme consta de seu art. 1.º, com valores variáveis entre R$ 427,00 e R$ 437,80. A propósito, importa lembrar que a Lei n.º. 3.496/2000, do Estado do Rio de Janeiro, teve a sua eficácia liminarmente suspensa pelo Ministro Marco Aurélio Mello, do STF, justamente por não trazer valores escalonados, como determina o art. 7.º, V, CF. Posteriormente, a cautelar perdeu o objeto em decorrência da edição de nova lei estadual que cumpriria o requisito legal, qual seja a fixação de pisos salariais variáveis de acordo com a extensão e a complexidade de cada categoria enumerada.

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A possibilidade dos Estados legislarem sobre o piso salarial, matéria típica de Direito do Trabalho, é decorrência da regulamentação parcial do art. 22, parágrafo único, da Constituição Federal. Este dispositivo estabelece que, mediante a edição de lei complementar, poderão os Estados legislar sobre as matérias nele previstas. A norma em questão (art. 22, CF), em seu inciso I, traz a competência privativa da União para legislar sobre Direito do Trabalho. Ora é cediço que as chamadas competências privativas ao contrário das competências exclusivas encerram a possibilidade de delegação. Nesse sentido o aludido parágrafo único do art. 22 da CF apregoa: ?Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo?.

Por seu turno, a regulamentação veio com a edição da Lei Complementar n.º 103/2000, que admitiu, em seu art. 1.º, a possibilidade dos Estados fixarem ?o piso salarial de que trata o inciso V do art. 7.º da Constituição Federal para os empregados que não tenham piso salarial definido em lei federal, convenção ou acordo coletivo de trabalho?. Sublinhe-se que a autorização legal delegada é apenas para a fixação de piso salarial (art. 7.º, V, da CF) e não para estabelecer Salário Mínimo (art. 7.º, IV, da CF).

Extensão do piso às demais categorias representativas

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Por certo que a idéia de se estabelecer pisos diferenciados, conforme prevê a Constituição, tem a finalidade de atingir justamente as categorias pouco representativas, que não possuam efetivas condições de buscar a complementação de seus direitos, via negociação coletiva. Neste particular, vislumbra-se que acertada foi a decisão do Governo de Estado em vetar o parágrafo único do art. 3.º da Lei. Caso assim não fosse, a nova Lei Estadual do Paraná extrapolaria os limites constitucionais, ao estender a aplicação de seu valor mínimo (R$ 427,00) a todas as categorias profissionais, inclusive àquelas que já possuem negociação coletiva em vigor, como originariamente fazia. É o que dispunha o parágrafo único do art. 3.º da Lei Estadual: ?Caso o piso salarial constante de acordo coletivo de trabalho ou convenção coletiva de trabalho seja inferior ao valor do piso salarial instituído nesta lei, será garantido ao trabalhador pagamento do valor ora instituído?.

Assim, se a Lei Complementar n.º 103/2000 autorizou os Estados da Federação, de forma excepcional, a editar pisos salariais somente àqueles ?empregados que não tenham piso salarial definido em lei federal, convenção ou acordo coletivo de trabalho?, tal diretriz deve ser rigorosamente observada, sob pena de extrapolamento legal e inconstitucional. Há de se considerar também que o reconhecimento das convenções e acordos coletivos é um direito fundamental (art. 7.º, XXVI, CF). Não se perca de vista que essa delegação legislativa da União para o Estado constitui-se norma especialísssima e, portanto, a exegese deve ser restritiva aos exatos limites autorizados pelo parágrafo único do art. 22 e pela correspondente Lei Complementar.

Ora, não se trata aqui de aplicar o princípio da norma mais favorável, pois este se refere unicamente à aplicação de determinada norma sem que se leve em conta a clássica hierarquia, cujo topo é ocupado pela Constituição Federal. Aplica-se a norma mais favorável ao trabalhador desde que haja conflito entre mais de uma norma válida dentro do sistema jurídico-constitucional. Para que seja atribuída eficácia à lei, deve antes observar os limites expressos da Constituição e sua correspondente Lei Complementar, o que não ocorria com o parágrafo em questão. Aliás, no caso de estender o direito ao recebimento do valor de R$ 427,00 a todas as categorias, estar-se-ia se diante da figura do ?salário mínimo?, questão vedada ao legislador estadual, o qual somente pode legislar sobre ?piso salarial? restrita às categorias profissionais não representadas.

Verifica-se, especialmente com a exclusão deste dispositivo do texto final, que a Lei dispõe taxativamente sobre as categorias que serão beneficiadas pelos pisos salariais, conforme escalonamento explicitado no art. 1.º.

Aplicação aos empregados domésticos

Outro ponto polêmico diz respeito à extensão da Lei Estadual à categoria dos empregados domésticos. Há previsão expressa nesse sentido, conforme a leitura do art. 1.º, II, que atribui à classe das domésticas o piso salarial de R$ 429,12, e do art. 4.º, que dispõe especificamente sobre a questão: ?A presente lei aplica-se aos empregados domésticos?. Certamente o faz amparada pelo art. 1.º,§ 2.º, da LC 103/00, que possui disposição semelhante.

Contudo, aqui exsurge nova polêmica. A LC 103/2000 confere competência delegada aos Estados para legislar sobre o art. 7.º, V (piso salarial). Ocorre que tal direito não foi estendido aos domésticos, conforme se verifica da leitura do parágrafo único do mesmo artigo 7.º , da CF. Diante disso, fica uma dúvida: seria inconstitucional a Lei Estadual na parte que estendeu o piso salarial regional aos domésticos? Há duas correntes de pensamento.

Se entendermos que a vontade soberana do constituinte foi a de excluir e alijar de todas as formas o direito ao piso salarial (art. 7.º, V, CF) à categoria dos domésticos, tal intenção deve ser respeitada, sendo, neste caso, inconstitucionais tanto a LC 103/2000 quanto a presente Lei Estadual. Assim, nessa esteira de pensamento, se o legislador pretender aumentar os direitos dos domésticos, deverá faze-lo mediante a edição de instrumento hábil, qual seja a Emenda Constitucional.

Por outro lado, se entendermos que todo o rol contido no artigo 7.º. da CF constitui direitos fundamentais, neste caso devemos invocar o princípio da máxima efetividade desta categoria de direitos proeminentes. De uma interpretação conforme a Constituição Federal, verifica-se pelo caput do art. 7.º, que todos os direitos sociais relacionados em seus incisos devem ser vistos de forma exemplificativa, ou seja, ?dentre outros que visem à melhoria da condição social do trabalhador?. Logo, ainda que o piso salarial (art. 7.º, V) não esteja inserido no rol dos direitos extensivos aos domésticos, ainda assim seria possível que Lei Estadual delegada pudesse assim fazê-lo com esteio no princípio que enquadra os direitos sociais como patamar mínimo vital, sem prejuízo de alargamento através de outros atos normativos.

Observa-se que os argumentos desta segunda corrente, os quais nos parecem mais proficientes, aplicam-se também ao ato normativo que introduziu a faculdade dos empregadores pagarem FGTS (Decreto n. 3361/2000) a seus empregados domésticos. Ora, o FGTS, a exemplo do piso salarial, é um direito social que não foi contemplado aos domésticos, consoante se vê do parágrafo único do art. 7.º, da CF. Ainda assim tal lei vem sendo aplicada sem qualquer declaração de inconstitucionalidade até o presente momento.

Conclusão

A nova Lei Estadual trata de fixação de piso salarial regional (e não ?salário mínimo?) para os empregados que não tenham piso definido em lei federal ou norma coletiva. Em que pese ser matéria privativa da União, houve possibilidade de delegação aos Estados nos termos do parágrafo único do art. 22 da Constituição Federal e a correspondente Lei Complementar n. 103/2000. Logo, a rigor, é válida a Lei Estadual em comento.

Há, contudo, uma inconstitucionalidade pontual em relação à regra que estende o valor do piso regional às demais categorias profissionais que já tenham piso salarial (em valor menor) previsto em instrumentos normativos. Tal extensão não foi autorizada pela LC 103/2000 que dá suporte à Lei Estadual.

Quanto à tentativa de estender o valor do piso regional aos domésticos, vislumbra-se certa controvérsia acerca da constitucionalidade desta medida. Se por um lado o direito ao piso salarial (art. 7.º, V, CF) não foi contemplado aos domésticos (par. único do art. 7.º, CF), implicando aparente inconstitucionalidade da LC 103/2000 e da Lei Estadual; de outro, é possível admitir a extensão de tal direito social (art. 7.º, V, CF) aos domésticos em face do princípio de proteção aos direitos fundamentais vistos sempre como um patamar mínimo e, portanto, com a possibilidade de ampliação através de outros atos normativos.

Todavia, até que exista a provocação e o pronunciamento do STF sobre a constitucionalidade da lei em abstrato, caberá o seu questionamento somente diante do caso concreto através do controle difuso.

O valor do novo piso salarial regional não se aplica aos servidores municipais, por expressa exclusão tanto da Lei Estadual quanto da LC 103. Também não se aplicará aos servidores públicos estaduais, posto que a emenda que previa tal situação foi rejeitada pela Assembléia Legislativa. A proposta de reajuste automático do valor dos pisos estabelecidos, em 7% ao ano, pelos próximos 12 anos, também restou rejeitada pelos deputados estaduais.

José Affonso Dallegrave Neto Academia Paranaense de é mestre e doutor em Direito pela UFPR, presidente da  Estudos Jurídicos APEJ.

Otávio Augusto Constantino é especialista em Direito pela APEJ-UniBrasil.