A Medida Provisória n.º 2.225-45, de 04/09/2001 – que instituiu o juízo de prelibação nas ações civis públicas de responsabilidade pela prática de ato de improbidade administrativa -, por sua flagrante inconstitucionalidade, não se coaduna com o propalado fortalecimento dos mecanismos de combate aos atos de corrupção praticados contra o patrimônio público.
A Medida Provisória em referência, dentre outras matérias, ratificou a instituição do referido juízo de prelibação nas ações civis públicas de responsabilidade pela prática de ato de improbidade administrativa, acrescentando dispositivos à Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa). A sua edição, e seguidas reedições, tendo surgido quase 10 (dez) anos após a promulgação desta lei e, revelam claramente a não observância dos indispensáveis requisitos constitucionais (art. 62, caput, CF) – vale dizer – da relevância e urgência(1).
Já com o advento da Emenda Constitucional n.º 32, de 11/09/2001, restou vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria relativa a direito processual civil (art. 62, § 1.º, “b”, da Constituição Federal), não se harmonizando com o atual sistema constitucional a manutenção da Medida Provisória n.º 2.225-45, de 04/09/2001, pois, ao regulamentar regras daquela província do direito, desbordou do âmbito próprio a elas reservado.
Como a Medida Provisória n.º 2.225-45, de 04/09/2001, está em vigor há mais de dois anos, o referido ato do Poder Executivo, até por força da omissão da Emenda Constitucional n.º 32, assume caráter permanente, fugindo completamente do escopo das medidas provisórias, que se destinam a regulamentar situações provisórias, relevantes e urgentes(2).
Não bastasse, esse caráter permanente, viola também a nova sistemática procedimental prevista pelo constituinte derivado, ou seja, as medidas provisórias anteriores à Emenda Constitucional n.º 32 que, inicialmente, teriam eficácia por 30 dias e, agora com a nova redação, por 60 dias (art. 62, § 3.º, da Constituição Federal), passam a produzir efeitos independentemente de prazo.
Fosse insuficiente, a produção de efeitos – sem prazo certo – também viola a nova sistemática na medida em que a reforma constitucional pretendeu restringir o número reedições (art. 62, § 7.º, da Constituição Federal) e, conseqüentemente, o prazo das medidas provisórias.
Ademais, a ausência de prazo para apreciação das medidas provisórias em vigor quando da edição da Emenda Constitucional n.º 32, constitui inaceitável inconstitucionalidade, por afronta à tripartição dos Poderes (art. 2.º da Constituição Federal) e à regra de que o “Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional” (art. 44 da Constituição Federal).
Antes de ser instituído o “juízo de prelibação” , o Ministério Público ingressava em Juízo com a ação civil visando coibir ato de improbidade administrativa e o Juiz desde logo recebia a petição inicial e determinava a citação do requerido.
A partir do malfadado “juízo de prelibação”, instituído pela Medida Provisória, o Juiz ao invés de receber a inicial e determinar a citação, ordena inicialmente apenas a notificação do requerido para oferecer manifestação por escrito. Não há prazo para que se efetive a tal notificação. Assim sendo, enquanto o requerido não é localizado a ação fica sobrestada indefinidamente, muitas vezes, por período superior a um ano, até que se efetive a notificação. Nesse interregno, o prazo prescricional de cinco anos, continua a fluir, pois só será interrompido com o despacho do Juiz que ordenar a citação (art.202, inc. I do Código Civil).
Sem dúvida é um estímulo gritante e inadmissível à impunidade no País, uma vez que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana contra a Corrupção e conforme divulgação do relatório Índice de Percepção da Corrupção de 2003, da ONG Transparência Internacional, o Brasil recebeu classificação 3,9 (foi 4,0 em 2002 e 2001; 3,9 em 2000; 4,1 em 1999 e 4,0 em 1998), indicando “que o país não tem piorado ao longo do tempo na percepção internacional sobre o grau de corrupção vigente – mas, também, assinala que não tem melhorado”.
Em síntese, ao tempo em que se invocam, cada vez mais, medidas destinadas a combater a corrupção e a impunidade, buscando o resgate da seriedade com o trato da coisa pública, objetivando a probidade dos agentes públicos, a responsabilização dos funcionários descumpridores de seus deveres e dos respectivos beneficiários pela prática de atos de improbidade administrativa, a Medida Provisória n.º 2.225-45, de 04/09/2001, ao instituir o juízo de prelibação, aumentou consideravelmente o tempo de tramitação das respectivas ações civis públicas, pois, não raro, são necessários vários meses – ou até mesmo mais de ano – para que seja superada a malfadada fase preliminar e, somente então, ter início o processo, com o recebimento da petição inicial e a determinação para a citação do(s) réu(s)(3), o que, lamentavelmente, contribui para o surgimento do instituto da prescrição.
Ressalte-se, em arremate, que a extinção do juízo de prelibação, em nenhum momento, afastará a observância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, assegurados, como não poderia ser diferente, após o recebimento da petição inicial e ao longo de todo o processo.
Destarte, considerando os argumentos explanados, urge a adoção de providências no sentido de extirpar do ordenamento jurídico a Medida Provisória n.º 2.225-45, de 04/09/2001, através de sua imediata revogação pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República, como demonstração concreta da seriedade com que pretende ver protegido o patrimônio público(4).
Caso não ocorra tal deliberação, é necessário que os membros do Congresso Nacional, agilizem a apreciação e votação da medida provisória(5), com a conseqüente rejeição, a fim de corrigir a situação excepcional que foi criada, e que permanece em vigor por mais de dois anos, à mercê do tempo e do estímulo à impunidade, encontrando-se, desde 04/10/2001, na Subsecretaria da Coordenação Legislativa do Congresso.
Por fim, como “ultima ratio”, se não for possível superar rapidamente o empecilho através do Poder Executivo ou do Poder Legislativo, espera-se que, através de Ação Direta de Inconstitucionalidade, a ser interposta pelos legitimados (art. 103, I, da Constituição Federal)(6), o Poder Judiciário possa afastar do ordenamento jurídico tamanha afronta aos ditames da Carta Magna.
Notas
(1) Aqui, oportuna a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello: “O Judiciário não sai de seu campo próprio nem invade discrição administrativa quando verifica se pressupostos normativamente estabelecidos para delimitar uma dada competência, existem ou não existem. Uma vez que a Constituição só admite medidas provisórias em face de situação relevante e urgente, segue-se que ambos são, cumulativamente, requisitos indispensáveis para a irrupção da aludida competência. É dizer: sem eles inexistirá poder para editá-las. Se a Carta Magna tolerasse edição de medidas de emergência fora destas hipóteses não haveria condicionado sua expedição à pré-ocorrência destes supostos normativos.” (Perfil Constitucional das Medidas Provisórias. In: Revista de Direito Público n.º 95. Jul-set. Ano 23. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1990. p. 31). Ainda: “Recurso Extraordinário n.º 222.719-PB. Segunda Turma. Relator: O Sr. Ministro Carlos Velloso. […]. Requisitos de relevância e urgência: caráter político: em princípio, a sua apreciação fica por conta do Chefe do Executivo e do Congresso Nacional. Todavia, se uma ou outra, relevância ou urgência, evidenciar-se improcedente, no controle judicial, o Tribunal deverá decidir pela ilegitimidade constitucional da medida provisória. Precedente: ADin 162-DF (medida liminar), Moreira Alves, Plenário, 14-12-89; ADin 1.397-DF, Velloso. RDA 210/294. […].” (grifo nosso)
(2) Confira-se o magistério de Alexandre Barros Castro: “A medida provisória não é regra, como a lei o é. É exceção. Só em casos excepcionais e desde que presentes os requisitos da urgência é que se poderá configurar a utilização de tais instrumentos normativos. Assim, é clara a derradeira diferença; a lei é a regra, enquanto a medida provisória é apenas uma exceção à normalidade. Em vista de todo o exposto, evidenciadas como foram as diferenças entre medida provisória e a lei, resta claro que uma e outra não se podem equivaler, por serem radicalmente diversas” (As Medidas Provisórias no Direito Tributário Brasileiro. In: Revista dos Tribunais. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas. Ano 6, n.º 24. Jul.-Set/98. São Paulo: RT, p. 101).
(3) Veja-se, por exemplo, a certidão expedida pelo Juízo da 3.ª Vara da Fazenda Pública, Falências e Concordatas da Comarca de Curitiba, em anexo, noticiando que, em ação civil pública de responsabilidade pela prática de atos de improbidade administrativa, movida pelo Ministério Público do Estado do Paraná, objetivando o ressarcimento ao erário público da vultosa quantia de R$ 106.960.797,48 (cento e seis milhões, novecentos e sessenta mil, setecentos e noventa e sete reais e quarenta e oito centavos), embora a distribuição tenha ocorrido em 27/2/2003, até o presente mês de outubro de 2003, “a petição inicial ainda não foi recebida”, o que serve para comprovar os graves prejuízos ao combate à corrupção e aos atos de improbidade administrativa, em função da instituição da fase de prelibação pela Medida Provisória n.º 2.245-45, de 4/9/2001.
(4) A possibilidade de revogação de Medida Provisória é matéria já pacificada. Em 1.º/9/2003, por exemplo, foi editada a Medida Provisória n.º 128, que revogou a Medida Provisória nº 124, de 11/07/2003, deixando clara, na Exposição de Motivos, a possibilidade de revogação de medida provisória: “Importa destacar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal há muito admite seja uma medida provisória revogada por outra (por exemplo, a ADInMC n.º 221-O/DF, Tribunal Pleno, Relator Ministro Moreira Alves. DJ de 22.10.1993 e a ADInMC n.º 1.207-O/DF, Tribunal Pleno, Relator Ministro Néri da Silveira, DJ de 1º/12/1995), entendimento esse que, induvidosamente, mantém-se aplicável sob a sistemática da Emenda Constitucional n.º 32, de 2001. Com efeito, a prática recente do Congresso Nacional o demonstra: a Medida Provisória n.º 53, de 11 de julho de 2002, revogou dispositivos da Medida Provisória n.º 51, de 4 de julho de 2002”.
(5) Aplicando, no que for compatível, a Resolução n.º 1, de 2002-CN, que dispõe sobre a apreciação, pelo Congresso Nacional, das Medidas Provisórias a que ser refere o artigo 62, da Constituição Federal.
(6) Art. 103 da Constituição Federal: “Podem propor a ação de inconstitucionalidade: I – o Presidente da República; II – a Mesa do Senado Federal; III – a Mesa da Câmara dos Deputados; IV – a Mesa de Assembléia Legislativa; V – o Governador de Estado; VI- o Procurador-Geral da República; VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII – partido político com representação no Congresso Nacional; IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Maria Tereza Uille Gomes é procuradora-geral de Justiça do Paraná.