Juiz que afasta prefeito do exercício do mandato pratica ato ilegal. Isso porque nenhuma lei lhe confere tal prerrogativa judicante.
A única hipótese de afastamento de prefeito está prevista no art. 2.º, II, do Dec.-Lei 201/67. Ordena este preceito que, ao receber a denúncia-crime “o juiz manifestar-se-á obrigatória e motivadamente sobre o seu afastamento do cargo durante a instrução criminal”.
Atualmente, em virtude da outorga de foro especial ao prefeito, pelo art. 29, X, CF/88, ao invés do juiz, quem examina a denúncia é o órgão fracionário do Tribunal de Justiça, na forma estabelecida pelo regimento interno.
Embora o objetivo dessas notas seja outro, explicitado mais adiante, é oportuno recordar que precede o recebimento da denúncia um intercalar juízo de sua admissibilidade. Esse momento prefacial é delineado tanto no art. 2.º, I, do Dec.-Lei 201/67 (trata dos crimes próprios de prefeito) quanto pelos arts. 4.º, 5.º e 6.º da Lei 8.038/90 (disciplina o trâmite da ação criminal originária nos tribunais).
O contraditório prévio à aceitação da denúncia atende ao imperativo de ordem pública. Agente político, depositário da confiança dos seus concidadãos, mediada pelo sufrágio democrático, deve estar à salvo do desgaste na sua imagem, resultante de processo-crime inidôneo.
Vencida essa fase prévia, acaso receba a denúncia, o tribunal poderá afastar o prefeito. Porém, conforme já decidiu o STF (que diz o que é a Constituição), o despacho judicial de afastamento será justificado e apoiado em elementos objetivos que convençam de sua utilidade para o normal curso do processo e aplicação da pena (RTJ 128/856). Dizer que a denúncia é formalmente perfeita não satisfaz. A perfeição formal pode ocultar suposições e inútil “sofrimento processual” ao acusado.
O rigor da fundamentação, inerente a qualquer ato jurisdicional (art. 94, IX, CF/88), decorre de relevantes razões. A primeira, do princípio constitucional da inocência presumida, inscrito no art. 5.º, LVII, CF/88, graças ao qual o acusado não deve sofrer efeito de condenação definitiva. A segunda, porque o mandato político republicano é limitado no tempo e improrrogável, sendo, por isso, irrestituível o tempo da indevida privação do seu exercício. Donde, a irreparabilidade do dano infligido ao titular, conforme lição do ministro Sepúlveda Pertence (cit. na RTJ 149/436).
Eis o lastro da asserção peremptória lançada já na abertura deste trabalho.
Sublinhe-se, ainda, a inaplicabilidade da medida cautelar do impeachment ao prefeito. Nesse sentido é a interpretação autêntica do Dec.-Lei 201/67, construída por seu autor confesso, Hely Lopes Meirelles: “Por isso temos afirmado e reafirmado que o Decreto-Lei 201/67 suprimiu o impeachment no governo municipal, ou mais adequadamente, substituiu-o pela sanção político-administrativa da cassação do mandato [pela Câmara], sem prejuízo da sanção penal e da responsabilização civil a cargo da Justiça comum”. (“Direito Municipal Brasileiro”, Edit. RT, 1985, 5.ª e última edição exclusiva do autor, p. 524-5).
Apesar do exposto, juízes de primeira instância têm afastado prefeitos, acusados da prática do delito de improbidade, em ações civis (Lei 8429/90). E o que é mais lamentável: com o integral apoio dos tribunais, cuja interpretação literal e reducionista do art. 29, X, da Constituição da República, parece satisfazer o frenesi dos juízes neófitos, sequiosos de afirmação, e a comodidade das sobrecarregadas cortes (alguém, no Judiciário, teria coragem para afastar o presidente da República?).
Com efeito, o art. 29, X, da Carta Nacional, prescreve “o julgamento do prefeito perante o Tribunal de Justiça”. De onde se extraiu a simplista idéia de que esse julgamento se restringe à matéria de cunho penal? Se a interpretação limitativa repousa no fato de que o foro especial se vincula às questões pessoais dos agentes políticos, como parece ocorrer, então ela carece de consistência. Realça o desacerto da exegese dominante o ponto de vista do ministro Luiz Vicente Cernichiaro, seguramente um dos mais lúcidos integrantes do STJ, manifestado acerca do art. 29, X, da CF/88. Para ele, “o juiz natural é conquista do Estado de Direito Democrático: resguarda a dignidade da função, e antecipa o juízo competente”. Assinala, a propósito, que é o município que arca com a responsabilidade civil e administrativa de ato irregular do prefeito. Logo, o município, e não o prefeito, integrará o pólo passivo da relação processual decorrente, pois se trata de ato funcional. Diversamente, na ação penal movida contra o prefeito, por crime contra a administração pública, a responsabilidade é pessoal e é o prefeito em pessoa que ocupa o banco dos réus (cf. Revista “Interesse Público”, SP, 1999, n.º 3, p. 199).
Resulta incontroverso que as ações provenientes de ato praticado pelo agente, em nome do ente estatal, não são julgadas pelo Tribunal de Justiça, ex vi do art. 29, X, CF/88. Entretanto, se o prefeito comparece em juízo para se defender pessoalmente em virtude de ato praticado em razão e no exercício do mandato, o foro será o mesmo da ação criminal, ou seja, a corte de Justiça. Ora, sendo certo que a Lei de Improbidade pune, não o Poder Público, mas a pessoa do prefeito, e por essa razão subtrai-lhe o mandato, o foro da respectiva ação é também o especial.
Portanto, a atual orientação dos tribunais é juridicamente insustentável.
Da incompetência absoluta do juízo monocrático para decidir sobre a perda ou suspensão do titular de mandato político, ocupei-me em artigo intitulado “Improbidade e foro especial”.
Sendo incompetente ratione materiae, ao juiz é defeso afastar prefeito do exercício do mandato.
Neste ponto, se faz necessário demonstrar que nem o juiz nem o órgão fracionário do Tribunal de Justiça têm poder para suspender prefeito, em ação de improbidade lastreada na Lei 8.429/90.
Antes, convém abrir parêntese destinado a realçar outro grave defeito da extravagante Lei da Improbidade. Entre vários, destaca-se aqui o vício de origem. O procedimento de sua elaboração desobedeceu a formalidade essencial contida no art. 65, parágrafo único, da CF/88. Sabe-se que as emendas propostas na Câmara dos Deputados não retornaram à apreciação do Senado Federal. Um acordo de lideranças, celebrado à socapa, “cozinhou” o projeto a quatro mãos. Submetido ao Executivo, o então presidente Collor editou a lei. Paradoxalmente, na produção de diploma legal de conteúdo moralista, os fins justificaram os meios.
Pois bem. A ambígua Lei de Improbidade, no capítulo das “disposições penais”, confunde inclusive os mais fervorosos devotos da imponderável moralidade pública, da qual a improbidade é subproduto. De par com a promessa de detenção aos litigantes de má-fé, coloca disposições não punitivas concernentes às vítimas dos denunciantes temerários. Em face do tumulto orgânico, uma interpretação sistemática dessa lei, como convém ao Direito Público, torna-se impraticável.
Nesse capítulo “das disposições penais” (há outro capítulo intitulado “das penas”), os juízes vêm garimpando a competência para afastar prefeitos.
Ali, o art. 20 condiciona a aplicabilidade das sanções preconizadas pela Lei de Improbidade ao trânsito em julgado da sentença condenatória nela fundada. Seu parágrafo único permite o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, quando a medida se fizer necessária à instrução processual. Este o ponto central destas considerações. Por isso, o mencionado parágrafo terá de sofrer minuciosa análise.
A chave da ordenança em causa reside no alcance da expressão agente público. Sua compreensão não oferece dificuldade porque, bem ou mal, a própria lei, no art. 2.º, conceituou o agente público como sendo aquele que exerce mandato, cargo, emprego ou função na administração pública, direta ou indireta.
Todavia, na regra em comento, a lei alude a cargo, emprego ou função, isto é, enumera apenas três daquelas quatro espécies de título de provimento de agentes nos órgãos estatais. Omite o mandato. Por outras palavras, podem ser afastados do exercício funcional os que detêm cargo, emprego ou função. Ao revés, não podem ser afastados os portadores de mandato obtido por eleição.
É certo que a simples menção a agente público, no contexto da lei, face ao significado que lhe emprestou determinado artigo, especifica os tipos de preposto estatal nele inclusos. Contudo, se após aludir a agente público, no preceito seguinte, repete as espécies de servidor estatal, também de forma taxativa, porém exclui uma ou algumas das enumeradas algures, sem dúvida, estabelece exceção intencional. É o que sucede com o parágrafo do art. 20. Neste, a própria Lei de Improbidade, em nova enumeração exaustiva, omitiu uma espécie de vínculo com o poder público, ou seja, o mandato. Sua exclusão do conceito de agente público traduz regência normativa diferenciada e específica, tão só para os efeitos do parágrafo em tela.
Constata-se, na espécie, o fenômeno da legislação denominado de “silêncio eloqüente”. Em voto de relator, no STF, o ministro Moreira Alves, inspirado no direito alemão, incluiu na ementa de acórdão a “distinção entre lacuna da lei e `silêncio eloqüente’ desta”. Ao longo do voto condutor, Moreira Alves explicou “que é o silêncio que traduz que a hipótese contemplada é a única a que se aplica o preceito legal, não se admitindo, portanto, aí, o emprego da analogia” (RTJ 139/965). A controvérsia solucionada girava em torno de matéria anteriormente inclusa no rol de competências da Justiça do Trabalho, e que fora retirada pelo art. 114 da CF/88. Sustentava a parte vencida a manutenção daquela competência, por obra da analogia.
Outrossim, há outros argumentos que abonam a exclusão do mandatário dentre os agentes estatais passíveis do afastamento provisório, em benefício de instrução processual a salvo de perturbações.
Uma delas deriva do caráter sancionatório do preceito. Localizado no capítulo das “penas” em lei de cunho eminentemente punitivo (o tipo de improbidade descrito no art. 12 pressupõe o dolo), ajusta-se à lição de Carlos Maximiliano: “Denomina-se argumento pro subjecta materia o que se deduz do lugar em que se acha um texto” (“Hermenêutica e Aplicação do Direito”, Liv. F. Bastos, 1957, p. 332).
Desde que o preceito focalizado impõe espécie grave de sanção, privando a autoridade estatal do exercício das atribuições constitucionais e legais, sua interpretação deve ser a mais estrita possível. É como ensinam os mestres da hermenêutica.
O juiz que se vale do permissivo veiculado no parágrafo do art. 20 da Lei de Improbidade, para afastar prefeito do exercício do mandato, violenta duplamente a ordem jurídica: julga sem competência e inclui na lei aquilo que o legislador não escreveu. Aquela agride a esquecida garantia fundamental do cidadão de ser processado e julgado tão-só pela autoridade competente (art. 5.º, LIII, CF/88). Esta vulnera o princípio da legalidade (art. 5.º, II, CF/88), visto que “competência não se presume”, segundo Carlos Maximiliano (ob.cit. p. 330). Para o ministro Moreira Alves, a competência “no Direito Público tem que ter apoio em lei ou na Constituição” (RTJ 137/496).
Outra fonte de convicção de que o parágrafo do art. 20, da Lei da Improbidade, preservou o mandato político da possibilidade de afastamento do respectivo titular, emana do seu caráter institucional.
Compartilhando da essência do Estado Democrático, o mandato político é outorgado pela soberania popular, origem de todo o poder (art. 1.º, parág. único e art. 14, CF/88). Seu estatuto, modo de aquisição e de perda, tem assento constitucional (art. 28, § 1.º; art. 29, IX, X, XIV; art. 55 e art. 86, c.c. art. 52, parág., CF/88).
Em rigor, na democracia, só o povo, que concede o mandato, poderia retirá-lo. Todavia, há exceções consignadas na Carta Magna pelo congresso constituinte originário. Como toda exceção à regra, sua interpretação deve ser estrita. Assim, afigura-se discutível que lei ordinária, não expressamente autorizada pela Constituição da República a dispor a esse respeito (Lei 8.429/92), possa afetar mandato político. Donde, a inferência inelutável de que o parágrafo do art. 20 tributou o respeito à dignidade política do mandato, respeito aliás não dispensado, no restante do seu texto, pela esdrúxula Lei da Improbidade. Daí porque o focalizado dispositivo, dotado de autonomia normativa, se absteve de nivelá-lo a simples cargo, emprego ou função burocráticos, hierarquicamente subalternos.
Ninguém ignora o descrédito dos atuais mandatários, fruto em parte da arbitrária generalização promovida pelos falsos moralistas, hoje alçados a paradigmas sociais. Isso, entretanto, não justifica que o instituto democrático do mandato político sofra os efeitos da depreciação provocada pela conduta de alguns de seus titulares, a ponto de magistrados afoitos arrogarem-se competência para puni-los. A quase totalidade deles, juízes, assim age sob o pretexto de satisfazer o “clamor popular”, palavra de ordem cunhada pelo patrulhamento moral, sucessor do patrulhamento ideológico, tão intolerante quanto este.
Embora raciocinando na contracorrente do “misoneismo hermenêutico” (Sepúlveda Pertence), deve concluir-se pela incompetência de juiz e de câmara de tribunal para afastar prefeito, com fundamento na malsinada Lei da Improbidade.
Reginaldo Fanchin
é advogado e membro do Instituto dos Advogados do Paraná.