Chegamos ao ?fim da jusacademia?. Se os anos 50 foram o fim das ideologias, como quisera Daniel Bell, e os 80 da história para Francis Fukuyama, a última década, entremeada com o fim da geografia, sem dúvida representou o fim da academia. Não apenas desapareceram os intelectuais, e suas grandes teorias, mas desapareceram, especialmente, os professores e seu ofício.
Certamente parte deste vaticínio tem sua causa na deterioração gradativa e extraordinária ocorrida nos últimos anos com o corpo discente. O gosto pelo estudo, a disciplina, a responsabilidade, a seriedade, a simpatia pelas grandes descobertas, o paladar das questões intrincadas, a satisfação das soluções demoradas, ainda que mais estapafúrdias possíveis, perderam-se no caminho da história. A futilidade, o prazer sensorial e instintivo, a postura desenxabida diante do mundo das letras, a vulgaridade de idéias roubaram a cena e passaram a constituir parte significativa da vida dos jovens.
Contudo, uma análise etiológica não pode, de modo algum, concentrar-se apenas naqueles que, passivamente, e cada vez mais passivamente, receberam um determinado modelo de ensino, a tanto tempo questionado pela própria academia. É indispensável, de outro modo, pensar na formação dos professores e no seu papel diante do mundo acadêmico. Por certo que uma reflexão como essa poderia ser estendida a toda forma de ensino humanístico, entretanto, por mero recorte, é possível se concentrar no ?ensino jurídico?, e ver que nele a ruína não está somente nos ouvintes, mas, sobretudo, nos falantes.
Durante muitas décadas, a coincidir com os duros anos predecessores da década perdida, o ensino jurídico dos catedráticos, ou catedráulicos, como bem dissera Lyra Filho, foi rechaçado por representar o autoritarismo e o esvaziamento político que fez parte desde o início da elite intelectual brasileira, fosse a de matriz européia no Brasil-Império, fosse a herdeira dos bacharéis da velha República, fosse mesmo a tecnocrata militar da ditadura.
Com imensa razão, a crítica construída a partir dos anos 70 e 80 caminhava na direção certa, conquanto com alguns anos de atraso em relação aos soixante-huitards, que na França gaullista, há algum tempo empunhavam seus gritos pela ?fin de l?université!?. A necessidade de ruptura com os modelos assépticos no ensino jurídico recobrava atenção dos acadêmicos, e fazia com que o novo modelo de ensino, imensamente politizado, democrático e vanguardista fosse referência de grande maioria dos jusprofessores.
Deste modo, a geração conseqüente de ?jusprofessores à Woodstock?, e seu imenso clamor por uma ?contracultura jurídica? foi fundamental, e nos legou uma ?academia jurídica? crítica, underground, cujos augúrios eram de bons tempos, de professores engagés, comprometidos com um jusuniverso mais contestador, plural e libertário. Somos, assim, uma geração de alunos com professores marginais, alternativos, destinados, no seu tempo e na sua vontade (certamente apenas para aqueles que acompanharam o movimento), a construir uma academia de forte cunho marxista, quando não foucaultiana.
Todavia, muitos dos que um dia se filiaram a essa hippilização da juscultura brasileira, ainda nela permanecem, afoitos na condição de órfãos históricos, excitados com um discurso inevitavelmente anacrônico, e, que, portanto, conserva apenas o desejo, mas não mais as qualidades da geração setentista. Tornaram-se vazios, e a anticultura se transformou na ?a-cultura?, de ?professores de rua?, imensamente politizados, que, particularmente, à exceção de raríssimos, nem mesmo saem mais às ruas, de professores conscientes, porém, sem qualquer leitura.
Ao lado desta geração (que certamente não engloba a todos, vez que muitos dela fugiram, seja para se tornarem ainda mais conservadores, seja para optarem por uma ?nova via?), veio se juntar uma nova. De ex-alunos também engajados, porém, sem qualquer apreço pelo estudo. Fazemos parte de um novo corpo docente, que teve na origem do aprendizado a cultura crítica, mas que dela restou apenas o eco sem expressão política, absorto na imagem coletiva do passado. Trata-se, infelizmente, com exceção de muito sérios e dedicados professores, de uma geração vocacionada à ?titulação?, sejam acadêmicas, sejam profissionais, sem ter qualquer predileção pelo magistério.
Muitos correm à beira em busca de títulos honoríficos, tais como de juiz, promotor, delegado, procurador, etc., a fim de que o seu parco conhecimento possa ser sustentado pelo brilho (não sem esforço, naturalmente) de pronomes peculiares de tratamento. Logo, uma imensidão entulha a fila dos concursos públicos sem qualquer vocação ou sonho, apenas pelo desejo de segurança econômica (explicável num país sem condições estáveis como nosso), ou de segurança intelectual, como se o título de juiz ou promotor fosse, por si só, sinônimo de cultura.
De igual modo, se não pior, porque dentro do interior da própria acadêmica, interna corporis, outros tantos correm em busca títulos de mestre, doutor, pós-doutor, livre-docente, sem qualquer condição de recebê-los, apenas pelos mesmos fúteis desejos de segurança econômica (já que doutores ganham mais que bacharéis), ou de segurança intelectual, como se o título de doutor, portasse consigo a ?autoridade da cultura?, como bem dissera Hannah Arendt.
Vê-se pela consagração da ?era dos palestradores?, a geração dos seminários e dos congressos; dos cursos ?telepresenciais?, que mais exigem apresentadores e menos professores; de professores preocupados com o que se antepõem diante de seus nomes, ou com o que preenchem seus currículos (numa corrida desvairada por publicações), ou, enfim, com o que pode enfatizar um certo brilho, como cargos, lugares, etc.
Logo, seja a herança dos questionadores esvaziados, seja a presença dos jovens titulados, a jusacademia vive, inevitavelmente, uma confluência de gerações muitas vezes iliteratas, que, embora não sejam conservadoras como as dos catedráticos, não têm, de longe, o mesmo nível de leitura e dedicação que as desses tinham. Aquelas horas de estudo e esforço se perderam, fazendo a ?leitura pacienciosa? ceder à ?leitura acelerada?, a ?leitura rigorosa? à ?leitura dinâmica?, e o os ?títulos? se sobreporem ao ?conhecimento?.
Somos, infelizmente, uma ?geração Lattes? (sem desprestigiar o nome do eminente cientista), destinada a produzir, a ser eficiente academicamente, não importando o conteúdo da leitura ou da escrita. Somos, infelizmente, uma geração superficial e vazia, predestinada, se continuar no trilho que corremos, a não construir nada, senão a contribuir para que a fragilidade de nosso corpo discente reitere o seu descaso. Pelo mais óbvio que soe, embora não seja realidade, não se fazem professores sem leitura, sem estudo, sem compromisso com os livros, só com títulos. Deixemos os auditórios, e entremos verdadeiramente nas salas de aula! Troquemos os teatros e os salões pelas bibliotecas!
Guilherme Roman Borges é doutorando e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Dieito na USP; mestre em Sociologia do Direito na UFPR; professor de Economia no Unicenp.