Ideologia na fome

Organizações não-governamentais estão pedindo que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva deixe os alimentos geneticamente modificados ? os transgênicos ? fora do programa Fome Zero. Não acham politicamente correto combater a fome do povo com comida sobre a qual o homem meteu a mão. Para fazer o pedido, uma plêiade de iluminados, incluindo alguns deputados do PT, tomaram café com o agrônomo e professor de economia agrícola José Graziano da Silva, coordenador do programa, no décimo andar do anexo 4 da Câmara dos Deputados. Não se divulgou o que comeram.

Enquanto a ideologia toma conta do primeiro programa do novo governo, milhões de famintos continuam a caçar nos lixões um pedaço de qualquer coisa para comer, dentre restos de tudo, original ou modificado, e alimentos tecnicamente estragados. O estômago vazio não se importa, desde que o nariz e a boca façam porta. Um prato fumegante de sopa de soja transgênica poderia ser bem melhor que uma partida de camarão rançoso, ou tomates amadurecidos com agrotóxico, já quase podres de maduros. Ou, ainda, um peito de chester ? também este crescido artificialmente ? mantido fora da geladeira.

Assim, entretanto, não pensa o homem feliz e de barriga cheia. É certo que o debate sobre a questão está longe de ser vencido. Aqui, na Europa ou nos Estados Unidos, discute-se o que é melhor: se as vantagens econômicas atribuídas a sementes transgênicas, onde se esquece praticamente do uso dos agrotóxicos, ou se velhas variedades convencionais, suscetíveis a lagartas, gafanhotos e outras pragas que dizimam as plantações e brocam os frutos. Discute-se também que mal pode fazer ao homem comer coisas como o milho híbrido ? um dos primeiros geneticamente modificados conhecidos – , já consumido há meio século sem problemas. A medicina e a ciência não têm respostas definitivas. Apenas dúvidas não respondidas.

Num universo já furado pela bomba atômica, também se discutem os impactos ambientais causados pela disseminação da transgenia verde de tudo. Não há, também aqui, nada definitivo. Pelo visto, causaram maior estrago à natureza os incêndios no campo, provocados por pessoas como o francês Bové, amigo de Lula, que as sementes germinadas em terra fértil e limpa. Agora vem a China, com seus milhões de habitantes, fazer exigências na importação de produtos brasileiros. Mas no mesmo navio que embarca a soja brasileira embarca aquela argentina, transgênica. E aí, além da contaminação pela mistura, a complicação é mais comercial que sanitária. Afinal, a transgênica vale menos.

É uma tendência mundial conviver com o “problema”: transgênicos e convencionais são alimentos. Basta que o consumidor seja devidamente informado sobre a procedência para decidir livremente sobre sua preferência. E isso um rótulo resolve. Mas também sobre essa questão não há consenso. Nem na Europa, nem nos Estados Unidos ? o chamado primeiro mundo. Aqui no terceiro, entretanto, o consenso acontece, improvisadamente e ao sabor da ideologia, embora com poucas bases científicas. O Paraná, por exemplo, aderiu à proibição total, já antes do pronunciamento final da Justiça, para onde parte do debate afoito foi transferido.

Por qual motivo não perguntam a famintos e malnutridos ? do Brasil, da África e alhures – o que preferem? Ou perguntas não fazem parte do cardápio dos ideólogos bem nutridos que se julgam no direito de decidir o que podem ou devem os outros comer? Pior: se comem ou se morrem de fome.

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