Maria Berenice Dias
6. Direito à diferença – As normas legais precisam adequar-se aos princípios e garantias que identificam o modelo consagrado pela Carta Política que retrata a vontade geral do povo. O núcleo do sistema jurídico, que sustenta a própria razão de ser do Estado, deve garantir muito mais liberdades do que promover invasões ilegítimas na esfera pessoal do cidadão.
O fato de não haver previsão legal não significa inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de lei não quer dizer ausência de direito, nem impede que se extraiam efeitos jurídicos de determinada situação fática. A falta de previsão específica nos regramentos legislativos não pode servir de justificativa para negar a prestação jurisdicional ou de motivo para deixar de reconhecer a existência de direito. O silêncio do legislador precisa ser suprido pelo juiz, que cria a lei para o caso que se apresenta a julgamento. Na omissão legal, deve o juiz se socorrer da analogia, costumes e princípios gerais de direito.
Ainda que o preconceito faça com que os relacionamentos homossexuais recebam o repúdio de segmentos conservadores, o movimento libertário que transformou a sociedade acabou por mudar o próprio conceito de família. A homossexualidade existe, sempre existiu e cabe à justiça emprestar-lhe visibilidade. Em nada se diferenciam os vínculos heterossexuais e os homossexuais que tenham o afeto como elemento estruturante.
O legislador intimida-se na hora de assegurar direitos às minorias alvo da exclusão social. A omissão da lei dificulta o reconhecimento de direitos, sobretudo frente a situações que se afastam de determinados padrões convencionais, o que faz crescer a responsabilidade da Justiça. Preconceitos e posições pessoais não podem levar o juiz a fazer da sentença meio de punir comportamentos que se afastam dos padrões que ele aceita como normais. Igualmente não cabe invocar o silêncio da lei para negar direitos àquele que escolheu viver fora do padrão imposto pela moral conservadora, mas que não agride a ordem social.
As uniões de pessoas com a mesma identidade sexual, ainda que sem lei, foram ao Judiciário reivindicar direitos. Mais uma vez o Judiciário foi chamado a exercer a função criadora do direito. O caminho que lhes foi imposto já é conhecido. As uniões homossexuais tiveram que trilhar o mesmo iter imposto às uniões extramatrimoniais. Em face da resistência de ver a afetividade nas relações homossexuais, foram elas relegadas ao campo obrigacional e rotuladas de sociedades de fato a dar ensejo a mera partilha dos bens amealhados durante o período de convívio, mediante a prova da efetiva participação na sua aquisição.(23)
O receio de comprometer o sacralizado conceito do casamento, limitado à idéia da procriação e, por conseqüência, da heterossexualidade do casal, não permitia que se inserissem as uniões homoafetivas no âmbito do Direito de Família. Havia dificuldade de reconhecer que a convivência está centrada no vínculo de afeto, o que impedia fazer a analogia dessas uniões com o instituto da união estável. Afastada a identidade familiar, nada mais era concedido além de uma pretensa repartição do patrimônio comum. Alimentos, pretensão sucessória, eram rejeitados sob a alegação de impossibilidade jurídica do pedido.
As uniões homossexuais, quando reconhecida sua existência, eram relegadas ao Direito das Obrigações. Chamadas de sociedades de fato, limitava-se a Justiça a conferir-lhes seqüelas de ordem patrimonial. Logrando um dos sócios provar sua efetiva participação na aquisição de bens amealhados durante o período de convívio, era determinada a partição do patrimônio, operando-se verdadeira divisão de lucros. Reconhecidas como relações de caráter comercial, as controvérsias eram julgadas pelas varas cíveis.
A mudança começou pela Justiça gaúcha, que, ao definir a competência dos juizados especializados da família para apreciar as uniões homoafetivas, as inseriu no âmbito do Direito de Família as reconhecendo como entidades familiares. Cabe sinalar que o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul possui uma estrutura diferenciada. A divisão de competência por matérias existe também no segundo grau de jurisdição entre os órgãos colegiados do Tribunal de Justiça. Essa peculiaridade evidencia o enorme significado do deslocamento das ações das uniões de pessoas do mesmo sexo das varas cíveis para os juízos de família. Esse, com certeza, foi o primeiro grande marco que ensejou a mudança de orientação da jurisprudência rio-grandense.(24) A definição da competência das varas de família para o julgamento das ações envolvendo as uniões homossexuais provocou o envio de todas as demandas que tramitavam nas varas cíveis para a jurisdição de família. Também os recursos migraram para as câmaras que detêm competência para apreciar essa matéria.
Proposta a ação trazendo por fundamento jurídico as normas de Direito de Família, a tendência era o indeferimento da petição inicial. Decantada a impossibilidade jurídica do pedido, era decretada a carência de ação. O processo era extinto em seu nascedouro, por ser considerado impossível o pedido do autor. Esta foi a decisão proferida em ação de petição de herança cujo recurso,(25) invocando os princípios constitucionais que vedam a discriminação entre os sexos, por unanimidade de votos reformou a sentença. Foi reconhecido que a inicial descrevia a existência de um vínculo familiar e, afirmada a possibilidade jurídica do pedido, foi determinado o prosseguimento da ação. Esta decisão, de forma clara, sinalizou o caminho para a inserção, no âmbito do Direito de Família, das uniões homoafetivas como entidade familiar, invocando a vedação constitucional de discriminação em razão do sexo.
A primeira decisão da Justiça brasileira que deferiu herança ao parceiro do mesmo sexo também é da justiça especializada do Rio Grande do Sul.(26) A mudança de rumo foi de enorme repercussão, pois retirou o vínculo afetivo homossexual do Direito das Obrigações, em que era visto como simples negócio, como se o relacionamento tivesse objetivo exclusivamente comercial e fins meramente lucrativos. Esse equivocado enquadramento evidenciava postura conservadora e discriminatória, pois não conseguia ver a existência de um vínculo afetivo na origem do relacionamento.
Como o Direito de Família se justifica pela afetividade, fazer analogia com esse ramo do Direito significa reconhecer a semelhança entre as relações familiares e as homossexuais. Assim, pela primeira vez, a Justiça emprestou relevância ao afeto o elegendo como elemento de identificação para reconhecer a natureza familiar das uniões homoafetivas. O Relator, Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, em longo e erudito voto, invocando os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade, concluiu que o respeito à orientação sexual é aspecto fundamental para a sua afirmação. Na esteira dessa decisão, encorajaram-se outros tribunais e, com significativa freqüência, se tem notícias de novos julgamentos adotando posicionamento idêntico.
A possibilidade de ser reconhecida como relação jurídica, mediante medida cautelar de justificação, a convivência de um casal de mulheres para prevenir futuras controvérsias foi outro significativo avanço. Tendo sido indeferida a inicial foi provido o recurso,(27) sob o fundamento que a prova da convivência efetiva seria da maior importância na eventualidade de ruptura da vida em comum, com vista à apuração do resultado patrimonial.
Em outra demanda, foi afirmada a possibilidade do uso da ação de carga eficacial meramente declaratória da existência da relação homossexual. Mesmo inexistindo controvérsia entre as autoras sobre a existência da relação, restou reconhecido o interesse de agir com finalidade de prevenir futuras discussões(28).
A ausência de herdeiros sucessíveis levou o companheiro sobrevivente a disputar a herança que, na iminência de ser declarada vacante, seria recolhida ao município. Em sede de embargos infringentes foram reconhecidos direitos sucessórios ao companheiro pelo voto de Minerva do Vice-Presidente do Tribunal(29).
Recente julgamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,(30) por decisão unânime, determinou a partilha de bens, reconhecendo como união estável a convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, por quase cinco anos, observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência entre as partes.
É de se louvar a coragem de ousar quando se ultrapassam os tabus que rondam o tema da sexualidade e se rompe o preconceito que persegue as entidades familiares homoafetivas. Houve um verdadeiro enfrentamento a toda uma cultura conservadora e uma oposição à jurisprudência ainda apegada a um conceito conservador de família. Essa nova orientação mostra que o Judiciário tomou consciência de sua missão de criar o direito. Não é ignorando certos fatos, deixando determinadas situações a descoberto do manto da juridicidade, que se faz justiça. Condenar à invisibilidade é a forma mais cruel de gerar injustiças e fomentar a discriminação, afastando-se o Estado de cumprir com sua obrigação de conduzir o cidadão à felicidade.
A postura da jurisprudência, juridicizando e inserindo no âmbito do Direito de Família as relações homoafetivas, como entidades familiares, é um marco significativo. Na medida em que se consolida a orientação jurisprudencial, ainda que majoritária, emprestando efeitos jurídicos às uniões de pessoas do mesmo sexo, começa a alargar o espectro de direitos reconhecidos aos parceiros quando do desfazimento dos vínculos homoafetivos. Inúmeras outras decisões despontam no panorama nacional a mostrar a necessidade de se cristalizar uma orientação que acabe por motivar o legislador a regulamentar situações que não mais podem ficar à margem da Justiça. Consagrar os direitos em regras legais talvez seja a maneira mais eficaz de romper tabus e derrubar preconceitos. Mas, enquanto a lei não vem, é o Judiciário que deve suprir a lacuna legislativa, mas não por meio de julgamentos permeados de preconceitos ou restrições morais de ordem pessoal.
Não mais cabe deixar de arrostar a realidade do mundo de hoje.
Necessário ter visão plural das estruturas familiares e inserir no conceito de família os vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade, merecem a especial proteção que só o Direito de Família consegue assegurar.
O caminho está aberto, e imperioso que os juízes cumpram com sua verdadeira missão, que é fazer justiça. Acima de tudo precisam ter sensibilidade para tratar de temas tão delicados como as relações afetivas, cujas demandas precisam ser julgadas com mais sensibilidade e menos preconceito. Ou seja, com mais atenção aos princípios de justiça, de igualdade e de humanismo, que devem presidir as decisões judiciais.
Há muito já caiu a venda que tapava os olhos da Justiça. O símbolo da imparcialidade não pode servir de empecilho para o reconhecimento de que a diversidade necessita ser respeitada. Não mais se concebe conviver com a exclusão e com o preconceito.
A Justiça não é cega nem surda. Precisa ter os olhos abertos para ver a realidade social e os ouvidos atentos para ouvir o clamor dos que por ela esperam. Mister que os juízes deixem de fazer suas togas de escudos para não enxergar a realidade, pois os que buscam a Justiça merecem ser julgados, e não punidos.
Notas:
(23) DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade: o que diz a Justiça! Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 17
(24) Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Agravo de Instrumento n.º 599 075 496, Oitava Câmara Cível, Relator: Des. Breno Moreira Mussi, Data do julgamento: 17/6/1999, Ementa: RELAÇÕES HOMOSSEXUAIS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARAÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO DOS CASAIS FORMADOS POR PESSOAS DO MESMO SEXO. Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das varas de família, à semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido.
(25) Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível n.º 598 362 655, Oitava Câmara Cível, Relator: Des. José S. Trindade, Data do julgamento: 01/3/2000, Ementa: ?HOMOSSEXUAIS. UNIÃO ESTAVÉL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. É possível o processamento e o reconhecimento de união estável entre homossexuais, ante princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo descabida discriminação quanto à união homossexual. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade científica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e coletividades possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos. Sentença desconstituída para que seja instruído o feito. Apelação provida.
(26) Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível n.º 70001388982, Sétima Câmara Cível, Relator: Des. José Carlos Teixeira Giorgis, Data do julgamento: 14/3/2001, Ementa: UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO. PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros.
(27) Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível n.º 70002355204, Sétima Câmara Cível, Relator: Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Data do julgamento: 11/4/2001. Ementa: JUSTIFICAÇÃO JUDICIAL. CONVIVÊNCIA HOMOSSEXUAL. COMPETÊNCIA. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. 1. É competente a Justiça Estadual para julgar a justificação de convivência entre homossexuais, pois os efeitos pretendidos não são meramente previdenciários, mas também patrimoniais. 2. São competentes as Varas de Família, e também as Câmaras Especializadas em Direito de Família, para o exame das questões jurídicas decorrentes da convivência homossexual, pois, ainda que não constituam entidade familiar, mas mera sociedade de fato, reclamam, pela natureza da relação, permeada pelo afeto e peculiar carga de confiança entre o par, um tratamento diferenciado daquele próprio do direito das obrigações. Essas relações encontram espaço próprio dentro do Direito de Família, na parte assistencial, ao lado da tutela, curatela e ausência, que são relações de cunho protetivo, ainda que também com conteúdo patrimonial. 2. É viável juridicamente a justificação pretendida, pois a sua finalidade é comprovar o fato da convivência entre duas pessoas homossexuais, seja para documentá-la, seja para uso futuro em processo judicial, onde poderá ser buscado efeito patrimonial ou até previdenciário. Inteligência do art. 861 do CPC. Recurso conhecido e provido.
( 28) Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível n.º 70005733845, Segunda Câmara Especial Cível, Relator: Dr. Luiz Roberto Imperatore de Assis Brasil, Data do julgamento: 20/3/2003, Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. PESSOAS DO MESMO SEXO. Afastada carência de ação. Sentença desconstituída para o devido prosseguimento do feito.
(29) Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Embargos Infringentes n.º 70003967676, 4.º Grupo de Câmaras Cíveis de Porto Alegre, Relator: Des. Sérgio Fernando de Vasconcelos Chaves, Data do julgamento: 9/5/2003, Ementa: UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA. Incontrovertida a convivência duradoura, pública e contínua entre parceiros do mesmo sexo, impositivo que seja reconhecida a existência de uma união estável, assegurando ao companheiro sobrevivente a totalidade do acervo hereditário, afastada a declaração de vacância da herança. A omissão do constituinte e do legislador em reconhecer efeitos jurídicos às uniões homoafetivas impõe que a Justiça colmate a lacuna legal fazendo uso da analogia. O elo afetivo que identifica as entidades familiares impõe que seja feita analogia com a união estável, que se encontra devidamente regulamentada. Embargos infringentes acolhidos, por maioria.
(30) Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível n.º 70005488812, Sétima Câmara Cível, Relator: Des. José Carlos Teixeira Giorgis, Data do julgamento: 25/6/2003, Ementa: RELAÇÃO HOMOERÓTICA. UNIÃO ESTÁVEL. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE HUMANA E DA IGUALDADE. ANALOGIA. PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO. VISÃO ABRANGENTE DAS ENTIDADES FAMILIARES. REGRAS DE INCLUSÃO. PARTILHA DE BENS. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 1.723, 1.725 E 1.658 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. Constitui união estável a relação fática entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se os princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha dos bens segundo o regime da comunhão parcial. Apelações desprovidas.
Maria Berenice Dias é desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.