No dia 5 de novembro, comemora-se o Dia da Língua Portuguesa. Perdoe-me, leitor, mas não resisto em tratar da matéria-prima do bacharel ou licenciado em Letras. De início, reproduzo uma fábula de Esopo, intitulada ?O camponês e a árvore?:
?Nas terras de um camponês, nascera uma árvore que não dava nenhum fruto, servia apenas para abrigar os pardais e as cigarras que cantavam. Por isso o camponês resolveu cortar aquela árvore estéril. E, já com um machado na mão, ao dar o primeiro golpe, as cigarras e os pardais pediram para não destruir o seu abrigo:
– Poupa-o para que possamos continuar a encantar-te com nossos cantos.
Sem se importar com tal pedido, o homem deu um segundo golpe com o machado, depois um terceiro. Foi quando encontrou no oco da árvore um enxame de abelhas e mel. Antes mesmo de saboreá-lo, jogou longe o machado, tratou a árvore com se fosse sagrada e a cercou de cuidados.
Assim somos nós: temos mais pressa em salvar os ganhos que fazer justiça?.
Considero a árvore um elemento misterioso e de alta significação simbólica. Como pode uma semente, centenas ou milhares de vezes menor que a árvore futura, multiplicar-se tanto? Que impulsos poderosos a mãe natureza generosamente lhe destina, para que a semente se transforme e ocupe espaços mais e mais amplos? Como os humanos, quanto mais ereta, mais saudável; quanto mais saudável, mais duradoura; quanto mais generosa, mais amada.
Diziam os povos antigos que a árvore era símbolo da união entre o céu e a terra. Por isso, homens e pássaros fazem dela sua morada e abrigo, fonte de alimentação e repouso. Essa analogia herdada explica por que a fábula de Esopo continua fazendo sentido para nós.
Imagine, leitor, um camponês. A terra, conquistada com muito trabalho, lhe dá sustento e segurança. Sua atividade transforma-se em matéria útil: o algodão para vestir, o feijão para comer, a fruta para adoçar a vida e refrescar a sede. Ele é o protótipo do trabalhador rural, daquele que conquista a vida dia-a-dia, nada lhe é dado, tudo lhe exige esforço.
Mas aquela árvore, solitária, estéril e inútil, serve para quê?
Um momento! Nem tão inútil, porque nela vêm pousar os pardais e as cigarras. Mas de que servem pardais e cigarras? Pequenos, feios, efêmeros. Apenas voam e cantam. O que fazer com o vôo? Como transformá-lo em algo útil? E o canto, estridente e monótono? Se ainda fossem beija-flores e borboletas, que embelezam a paisagem com cores e delicadeza… Se fossem pombas e minhocas poderiam alimentar e adubar… Não, continuam sendo pardais e cigarras numa árvore estéril. O conjunto desprezível desses elementos exige a eliminação, a expulsão da vida e do espaço, a anulação.
A mentalidade produtiva e utilitária condiz perfeitamente com a sociedade atual, que construímos ou que nos impingiram. Nela, o que é útil tem como fonte o concreto, o que aparece, o que pode ser manipulado, contado, medido.
Nessa linha de raciocínio, o que é um profissional de Letras? Qual seu lugar nesta sociedade da produção e do capital? Como a sociedade olha para ele? Como nós olhamos para ele? Para sua atuação? Para seu valor social?
Com o olhar do camponês… Com o machado do camponês…
A língua portuguesa parece não precisar de professor: afinal os falantes acreditam que a utilizam desde as primeiras palavras balbuciadas. Para escrever… bem… um pouco de orientação poderia melhorar a expressão. ?Como todos falam e escrevem mal, ninguém vai reparar em alguns errinhos a mais.? Enfim, professor de português só serve mesmo é na hora do vestibular. Se um dia desaparecer o exame de redação…
Ler é o verbo menos conjugado na sociedade brasileira, e é uma das razões da atual crise na cultura. Sem educação – o livro ainda é o melhor veículo para pensar o mundo – podemos ter certeza que as crises serão mais profundas e continuadas.
No entanto, o machado suspende o golpe: no oco da árvore estão o mel e as abelhas. O mel, já sabemos, era alimento dos deuses, e as abelhas representam o símbolo de uma sociedade organizada, como já queriam os inconfidentes mineiros, que chegaram a pensar na abelha como um dos símbolos da bandeira do Brasil independente.
Em Letras, está o mel da consciência do mundo, em forma de linguagem. O que chamamos mundo e realidade são imagens, criadas por palavras pronunciadas ao longo dos tempos, que construíram os discursos para dar forma a tudo que nos cerca. O mel da consciência traz o conhecimento do outro, daquilo que não sou eu, do que não é meu próprio umbigo. Os professores de Letras sabem que a língua é um fato social, e supõe sempre a interlocução. Porque o outro está contido por natureza na fala, com ele surge a possibilidade das relações, para o bem ou para o mal, para libertar ou oprimir. Para dar prazer ou para sacrificar. Para fazer crescer ou para silenciar. O poder da palavra é infinito, e é com esse poder que nós, professores de Letras, lidamos.
Não estudamos apenas para corrigir erros de ortografia ou de sintaxe. Estudamos para ensinar que as palavras, pertencentes a todos, por vezes são tratadas como se tivessem dono, que as usa para submeter, para confundir, para impor um pensamento único. Tanto mais seremos professores de Letras quanto mais pudermos ensinar aos outros como não sucumbir a essa manipulação impositiva, como elaborar um discurso próprio, como fugir das armadilhas da língua (simultaneamente armadilhas do pensamento).
Este é o olhar sobre nossa profissão que desejamos provocar na sociedade. Este é o olhar que a sociedade acaba por colocar sobre nós, quando todas as vozes das sereias da produtividade e da riqueza material silenciam. Por que somente se valoriza a educação quando todos os poderes de degradação do homem se esgotaram?
Para que possamos convencer os outros de que somos a árvore do alimento e do trabalho, precisamos impedir a todo custo os golpes do machado destruidor. Precisamos mostrar que a natureza não se restringe a pardais e cigarras, mas tem a perenidade, a doçura e a energia do mel.