Hipertrofia da ação civil pública

Os fins não justificam os meios. Este preceito moral apenas informa a consciência do cidadão.

No âmbito forense, ao contrário, a aludida máxima alcança vigência obrigatória. Sua imperiosidade não repousa, todavia, em base axiológica. Ancora-se, isto sim, na garantia jurídico-constitucional do due process of law (art. 5.º, LIV, CF/88).

O devido processo legal, com efeito, decompõe-se em forma e conteúdo. Formalmente, concerne ao procedimento detalhado em lei anterior. Substancialmente (“substantive”), diz com o juiz natural, acesso à jurisdição, igualdade entre as partes, contraditório amplo etc.. (cf. Princípios Constitucionais do Processo, Lúcia Valle Figueiredo, Rev. Trim. Dir. Públ., Malheiros, 1993, vol. 1, p. 199).

Para os fins destas considerações, realço dentre a multiplicidade de conteúdos do devido processo legal o procedimento. Vale dizer: o processo terá que ser aquele devidamente preestabelecido na lei. Do contrário, restará violentada a garantia fundamental do cidadão de somente responder a processo cujo trâmite flua na pauta de regras fixas e rígidas. Tem-se como superada a antiga distinção entre processo e procedimento.

Assentadas as premissas, delas se pode deduzir a ilegitimidade de certo casuísmo processual, desafortunadamente consentido pelos Tribunais. Trata-se do emprego indiscriminado da ação civil pública, ora para questionar ato de improbidade administrativa, ora para substituir-se à ação popular.

Sabe-se que a ação civil pública tem finalidade taxativamente estipulada. Seu conteúdo, porém, ela o busca no direito material positivado na legislação pertinente à espécie cogitada.

Contudo, no tocante ao ato de improbidade administrativa, perseguido pelo Ministério Público, por meio da ação civil, há óbice legal intransponível. Sucede que a regência da improbidade administrativa não lhe empresta o necessário núcleo jurídico.

De fato, a Lei n.º 8429/92 vem de ser a lei especial prevista no art. 37 º, 4.º da CF/88. No art. 1.º, declara expressamente que os atos desonestos imputados a agente público serão punidos na forma por ela estabelecida. Adquirem relevo, nesse contexto, as prescrições assentadas nos arts. 14 a 17, que dispõem sobre as providências administrativas antecedentes ao processo judicial. Este último se traduz na ação ordinária de iniciativa concorrente do Ministério Público e da pessoa estatal prejudicada. Em capítulo reservado às penas, o art. 13 impõe amplo repertório de graves sanções, que compreendem desde a recomposição das perdas patrimoniais até à perda do cargo. Não há espaço para, na espécie, atuar a ação civil pública.

Maior, entretanto, é o impedimento à ação popular, porque nesta o Ministério Público carece de legitimidade ativa.

A teor do art. 5.º, LXXIII, da CF/88, a ação popular tem por finalidade anular o ato lesivo ao patrimônio público. Desconsidera-se, aqui, a moralidade, porquanto a eficácia de tal diretriz depende de integração legislativa. Este entendimento tem por si a decisão do STF acerca da moralidade a ser protegida pelo instituto político-eleitoral da inelegibilidade, inclusa no art. 14.º, 9.º, da CF/88 (RTJ 162/760). Para aplicá-la in natura, só convertendo os Tribunais Judiciários em Tribunais de Ética, condição aventada por Adilson Abreu Dallari (Improbidade Administrativa, Malheiros, 2001, p. 23). De seu turno, ex vi do art. 129, III, da CF/88, à ação civil pública cabe a proteção do patrimônio público. Aliás, entre as incumbências confiadas à ação civil pública, o citado dispositivo magno insere a defesa do patrimônio público e social. A conjunção aditiva e estabelece o vínculo entre os vocábulos público e social. De sorte que a simultaneidade do caráter público e social, impresso no patrimônio público submetido à tutela da ação civil, há de ser aquele facultado à incondicional fruição pela sociedade, a exemplo das ruas, praças, parques, jardins, prédios oficiais, praias, acervo cultural (art. 216, CF/88) e quejando.

Difere ainda a ação civil pública da ação popular à medida em que esta ocupa-se do ato administrativo do qual resulte dano patrimonial ao ente estatal, enquanto aquela socorre os bens da coletividade eventualmente molestados. Exemplo significativo do cabimento da ação civil pública, em termos de defesa dos bens pertencentes à coletividade reside na prevenção, ou despejo, e responsabilização de invasores de imóveis rurais e urbanos de domínio e uso de entes estatais. Ante a contumaz inércia dos legitimados para agir, tais medidas são invariavelmente providenciadas pelos respectivos governantes. Observa-se, no caso, flagrante inversão de funções. Enquanto o patrimônio da “população” é protegido pelos agentes administrativos, o Ministério Público assume a guarda do patrimônio da administração.

Injurídico se afigura, outrossim, o desapreço à nomenclatura adequada à espécie. Merece destaque a habitual confusão entre patrimônio público, interesse público e interesse difuso coonestada pelos corifeus do imperialismo da ação civil pública. Contra o relativismo dos meios, oponha-se o escólio de José Carlos Barbosa Moreira: “Entendo que, em Direito, a precisão terminológica e, sobretudo, o caráter unívoco das palavras, é um valor muito importante. É preciso que quando alguém pronuncie uma palavra técnica todos saibam do que se trata, e não se esteja a refletir se aquela expressão estará sendo usada neste ou naquele sentido. Trata-se de uma exigência científica, não de um formalismo de professor de processo” (Revista Trimestral de Direito Público, Malheiros, 1993, v. 3, p. 193).

Uns e outros que se apegam à ressalva inclusa no art. 1.º da Lei n.º 7347/85 “sem prejuízo da ação popular” a fim de legitimar espécie de condomínio fatual entre ambas as ações, perdem de vista um obstáculo insuperável. Cifra-se ele na radical impossibilidade de se interpretar a Constituição partindo-se da lei. Ora, se o exegeta abraça a lei, contrai o dever de acatar, ipso facto, a sua exaustiva enumeração dos objetivos demarcados à ação civil pública. E a inclusão dos bens públicos, no conceito de interesse coletivo, desfigura as aludidas categorias jurídicas, irredutíveis entre si. De se lastimar, portanto, que o oportunista ímpeto justiceiro, alimentado pela mídia, nivele arbitrariamente categorias díspares como interesse público, interesse coletivo e patrimônio público. Não se fazem concessões jus-científicas impunemente. A advertência vem do seguinte acórdão do STF: “Sendo o Direito uma ciência, os institutos, as expressões e os vocábulos possuem sentido próprio, sendo que a segurança na atuação científica não prescinde da correta utilização dos termos que lhe são próprios”. (AO n.º 191-PE RTJ 154/715).

De fato. O que determina a natureza da ação não é rótulo, mas o seu conteúdo ou pretensão. Ademais, na ação civil pública prepondera o viso condenatório em obrigação de fazer ou não fazer, ao passo que a ação popular busca sobretudo desconstituir o ato, sendo subsidiária a condenação do agente.

Pertinente, aqui, o correto raciocínio articulado por Carlos Ari Sundfeld em torno de dois determinados institutos abrigados pela Constituição: “O Constituinte quis, não se há negar, a coexistência de ambos. É óbvio que, se são dois institutos, e não um único, devem ser diversos. Se fossem em tudo iguais não seriam dois, mas o mesmo” (“Revista Trimestral de Direito Público”, Malheiros, 1994, vol. 6, p. 126). Com o citado autor, pode-se concluir pela inidoneidade de qualquer exegese simplista tendente a assimilar a ação popular à ação civil pública.

Outra não menos condenável forma de hostilizar o postulado do devido processo consubstancia-se no vicioso costume apelidado de “Frankenstein jurídico”, por Pedro S. Dinamarco (Ação Civil Pública, Saraiva, 2001, p.196). Mencionada deformidade consiste no respigar preceitos, ancilares das demais ações coletivas, com o fito de integrar normas incompletas, ou suprir lacunas da ação civil pública. Juiz que coonesta a focalizada “montagem” processual com peças recolhidas a esmo, na legislação afim, cria uma nova ação. Apodera-se do mister exclusivo do legislador. A censurável miscelânea processual parece revelar as primeiras manifestações da ousada concepção do direito de ação como abstrato e autônomo. Seu êxito paralisará em definitivo o Judiciário. A prática heterodoxa não escapou ao crivo do TJSP: “Ação civil pública. Ilegitimidade do MP, quando cabente eventual ação popular. Pedido impossível de condenação a reparar o dano, pagando aos cofres municipais. Mescla de ações injustificável. Recurso provido”. (Boletim da AASP 1.978/92).

Vozes discordantes depreciarão a tese assacando-lhe a surrada pecha de formalista. A elas replicar-se-á que o caráter instrumental das formas não possui a virtude de relativizar o tipo de procedimento. Sua indisponibilidade, garantida pelo due process of law, vem proclamada no art. 265, V, do CPC (indeferimento da inicial quando o tipo de procedimento escolhido pelo autor não corresponde à natureza da causa). De toda a pertinência, neste cenário especulativo, inserir a observação do Min. Sepúlveda Pertence: “A finalidade última do processo é a prestação jurisdicional e eficaz e, para tanto, é obrigatório prestigiar determinadas formalidades. Por isso é que, segundo o processualista francês Gérard Couchez, professor da Universidade de Paris, “se o formalismo é coisa indispensável, convém lutar contra o seu excesso, sem perder de vista, notadamente, que a forma deve ser respeitada não por ela mesma, mas na medida em que ela constitua garantia de boa justiça” (RTJ 182/640).

Em suma: o menosprezo da competência, constitucionalmente deferida à ação de improbidade e à ação popular, em prol da amórfica ação civil pública, travestida de curinga processual, importa hostilidade à garantia constitucional do devido processo pormenorizado nas respectivas leis de regência. Tal insubordinação, por si só, redunda em flagrante nulidade.

É tempo de retornar à idéia inicial, para ancorá-la nesta máxima inscrita em acórdão do STF: “O Direito é ciência e, como tal, o meio justifica o fim, mas não este àquele”. (HC n.º 70.236-DF RTJ 150/808).

Reginaldo Fanchin

é autor e membro do Instituto dos Advogados do Paraná.

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