Nunca como na atual questão do Haiti, a frase que Karl Marx usou na abertura do Dezoito Brumário de Luís Bonaparte aplica-se ao pé da letra. A dita frase assim está grafada: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de 1848-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito Brumário”.

Para eliminar a mais tênue dúvida sobre a salutar futurologia que o profeta barbudo exerceu a seu tempo, mesmo não tendo acertado todas as predições, observe o que escreveu entre 1905-10, quanto à expansão das atividades criminosas. Num raciocínio objetivo, Marx via o criminoso diretamente responsável pela edição de compêndios de Direito Penal e da própria lei além de propiciar o surgimento dos legisladores bem como de toda uma rentável vertente de exploração comercial da arte, literatura, teatro e no jornalismo. O filósofo da história arrazoava que o criminoso aparecia como sendo uma das “forças de equilíbrio” naturais, que estabelecem uma justa compensação e abrem toda uma perspectiva de ocupações úteis. E perguntava: “Teria o negócio de fechaduras chegado à perfeição atual, se nunca aparecessem gatunos?”.

No paupérrimo país caribenho, onde a farsa assume o lugar da tragédia, liberto do domínio francês desde 1804, a prática do colonialismo levado ao extremo da crueldade e a rapinagem impuseram um perene estado de miserabilidade sobre a população (a mais pobre das Américas). De quebra, ainda houve a fertilização do terreno para a posterior implantação de governos colaboracionistas ou ditaduras sangüinárias como foi a da família Duvalier (Papa e Baby Doc), ao longo de três décadas no início da segunda metade do século passado. O primeiro desses ditadores, o médico François Duvalier, o chamado Papa Doc em creole, espécie de mistura de francês, espanhol e expressões imemoriais usadas pelos habitantes primitivos da região, exerceu o poder com mão de ferro e passou à história como um perfeito espantalho antilhano da figura de Adolf Hitler.

Uma de suas criações mais insanas foi um organismo policial secreto, os temíveis Tonton Macoute, que, por sua vez constituíam um arremedo canhestro, mas não menos violento e ignóbil que o modelo abertamente adotado, a Gestapo, que agia à luz do dia espalhando terror, seqüestrando, torturando e eliminando fisicamente os que ousavam contrariar ordens de Papa Doc. Além dos rituais de vodu, até hoje praticados em larga escala pelos haitianos, a polícia política pouco permitia aos cidadãos, incluindo estrangeiros que se aventurassem a fazer turismo ou negócios no país.

Essa realidade foi descrita pelo escritor inglês Graham Greene no romance publicado pela Civilização Brasileira, se não me falha a memória, sob o título Os farsantes, logo transformado por Hollywood num belo filme estrelado por Elizabeth Taylor, Richard Burton, Alec Guinnes e Peter Ustinov. O filme (e o romance) exibem em detalhes a ortodoxia obscurantista exercida pelo ditador e sua polícia, dentre os quais estava a vigilância ostensiva, inclusive, do pessoal das embaixadas acreditadas em Porto Príncipe.

Forçados pela miséria, doenças e a falta de escolas e hospitais, essencialmente, sem falar no regime de exceção mais estúpido que a América conheceu, os haitianos escolheram como líder da luta democrática o ex-padre Jean-Bertrand Aristide, que por defender as teses da Teologia da Libertação acabou sendo expulso da Igreja.

Foi o primeiro haitiano a ser eleito democraticamente para a presidência, depois dos 30 anos de domínio da família Duvalier. Em 1990 quando essa eleição aconteceu, Papa Doc já estava morto e substituído pelo filho mais velho, Baby Doc, um enxundioso mancebo com ar abúlico, que ficou pouco tempo no poder e exilou-se em Paris a cavaleiro de um butim de US$ 120 milhões. Meses depois o vitorioso Aristide foi igualmente apeado por um golpe militar, exilando-se nos Estados Unidos. Em 1994, entretanto, a diplomacia militar de Washington garantiu sua volta ao governo. Seu primeiro ato, então, foi dissolver o exército.

Em 2000, o ex-padre que elegera o sucessor, René Préval, conquistou o segundo mandato, encerrado no último domingo com sua “fuga” do país, segundo os jornais, em operação coordenada pela CIA, o que já dá o que pensar. O próprio Aristide, ao chegar ao país africano que lhe deu asilo, declarou ter sido vítima de um golpe de Estado e levado a força para o avião. Enquanto isso Guy Philippe, ex-chefe de polícia, e Louis-Jadel Chamblain, ex-sargento do exército desmobilizado, principais figuras da oposição armada a Aristide, a quem acusam de fraude eleitoral e corrupção, foram recebidos como salvadores da pátria pela frenética e maltrapilha multidão que antes se engalfinhava e saqueava lojas.

A perspectiva política do Haiti não é suficientemente clara para quaisquer prognósticos quanto ao futuro do país. Philippe auto proclamou-se chefe militar em comando e mandou incisivo recado ao presidente provisório, de que não admitirá a menor ingerência na tarefa a si mesmo atribuída de reorganizar o exército. Com relação aos soldados estrangeiros integrantes da força de paz, vai acatar sua presença mas não suas ordens. Na farsa que tudo indica poderá ter conseqüências ainda mais funestas para a nação caribenha tudo é nebuloso, apesar do oceano constantemente anil das Antilhas. A maioria da população tem fome, está desempregada e a distância que a separa das poucas famílias que compõem a elite é infinita.

Assim como Marx previu com inegável clarividência as muitas farsas que a história haveria de testemunhar, como repetição das tragédias, cabe mais uma vez lembrar o pensamento assaz oportuno de Lampedusa, de que sempre é preciso mudar para que tudo fique rigorosamente igual.

Ivan Schmidt é jornalista e escritor

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