Em A bolsa amarela, Lygia Bojunga narra a história da menina Raquel que, ao ganhar a bolsa de uma tia, decide guardar nela os seus pertences. Num dos bolsos da bolsa (ah, as belezas da linguagem!), ela coloca três vontades secretas: a de ser menina, a de não crescer e a de escrever. Que bom seria se nossos guardados pudessem encontrar acomodação em bolsas reais, fora de nós, para que não ficassem perturbando e doendo em nossas entranhas! Fico pensando na bolsa descomunal que nós, adultos, precisaríamos ter, e no processo difícil de cortar o cordão umbilical imaginário, que faz nossas vontades serem exclusivamente nossas, porque as criamos, alimentamos e acarinhamos anos a fio: vontade de ser feliz, de amar e ser amado, de alcançar fama e respeito, de enriquecer, de tornar os outros felizes…
Lembro dos armários (móveis que deixaram a condição de objetos e se transformaram em entidades, cujo nome pronunciamos com a devida intensidade, prolongando-o, ?os armááários?), abarrotados, volumosos, os reservatórios em que desemboca o consumismo diário. Eles também guardam os indícios de nossos interesses volúveis e passageiros, as lembranças de objetos que um dia me interessaram e de outros mais, que ainda servem a necessidades presentes.
Entre os armários, saliento os que contêm livros, a modesta biblioteca que guardo em casa. Chuva, tempo livre, recolhimento e o desejo intenso de organizar: reúno esses ingredientes, derroto a preguiça e me ponho a revirar as estantes, com aspirador, panos e produtos de limpeza a postos. Ah, sim, e um enorme cesto de lixo nas proximidades.
As estantes são generosas, pois os livros parecem ter dado cria. Vão saindo de fileiras, de pilhas, escondidos atrás de outros, cheios de marcadores, alguns com capas provisórias de papel colorido. Mais generosas são as pilhas de papéis, acumuladas para registro ou futura utilização (futuro que, quando chega, traz consigo boa dose de esquecimento, e os papéis continuam adormecidos nas estantes).
E, por toda parte, em cantos, em espaços ociosos, sobre os armários, pendurados em portas, colados nos vidros, pequenos objetos, resultados de presentes ou compras, adesivos, cartões, canetas e fotos. Representam a história, tempo e pessoas, concretizados em coisas, a evocar lembranças quase sempre valiosas. A arrumação das estantes começa por elas: as mãos que sentem sua textura, os olhos que acariciam suas cores são manifestações externas das lembranças afetivas que o cérebro revive. A vontade primeira de excluir das estantes o máximo possível daqueles múltiplos badulaques luta contra a memória do passado.: o cartão que lembra fulano, a miniatura que foi presente de sicrano no dia da formatura, a foto dos amigos na comemoração de. Hesito, reservo, vou descartar por último.
Passo aos papéis. Que sina dramática pesa sobre nós, professores, que nos faz acumular muitos e infinitos papéis! Restos de cursos, textos que acreditamos úteis para tratar deste ou daquele assunto em aula, poemas e crônicas admiráveis, documentos, recortes. Soltos, em embalagens plásticas, em pastas, formam pilhas a devorar os espaços das estantes e a pressionar os livros para fora das prateleiras.
O enorme cesto de lixo continua vazio.
Os livros são o objetivo principal: é toda uma vida intelectual que se desdobra ante os olhos. Neles, vou encontrando, à medida que saem das estantes, fatos, pessoas, estudos, lazer. Redescubro autógrafos, assuntos, autores. Ficam esquecidos os objetos de limpeza, enquanto folheio continuadamente os volumes, relendo e reencontrando velhos amigos. Com a chegada de novos ocupantes, os mais antigos foram sendo empurrados para lugares menos iluminados, para posições menos evidentes. Com o trabalho de re-organização, os guardados ficam desprotegidos e expostos. Paradoxalmente, porém, é quando revelam todo seu potencial evocativo e propiciam a avaliação da medida de sua presença na memória, que os guarda intensa e virtualmente.
Nessa situação de trabalho, confrontada com a multiplicação dos livros, me lembrei de situação semelhante, relatada por Marina Colasanti em Fragatas para terras distantes, quando se pôs a imaginar que escritora teria sido, se não tivesse sido leitora: ?Os livros não teriam importância para mim, não seriam uma necessidade. Aqueles mesmos livros, que hoje rodeando-me nas estantes e sobre os móveis e até no chão me protegem, inexistiriam e minha casa teria paredes quase nuas, e de uma única cor. Sem saber que cada livro se abre sobre um mundo diferente, eu olharia apenas pela janela, que se abre sempre sobre a mesma paisagem?.
Devolvo os livros, mudando um ou outro de lugar, empilho os papéis, reponho os objetos. A chuva parou, o tempo se foi, o cesto de lixo permanece imenso e vazio. Acomodo-me à idéia de que precisarei de outro dia para organizar as estantes. Compreendi, mais uma vez, que isso significa reviver nos guardados a memória do que sou.