Uma das boas surpresas do festival veio da conturbada Bolívia, país de origem do espetáculo "En un Sol Amarillo", criação da companhia Teatro de los Andes, fundada em 1991 na cidade de Yotala, situada a 300 quilômetros de La Paz. Com texto e direção de César Brie, essa montagem tem como trágica matéria-prima uma série de depoimentos colhidos pelos atores em comunidades como Aiquile, Totora e Mizque sobre os sofrimentos causados por um forte terremoto que atingiu a região na noite de 22 de maio de 1998. Diante da quantidade de mortos e da completa destruição de milhares de moradias, a comunidade internacional enviou cerca de US$ 30 milhões ao país. Logo começaram as denúncias de desvios dessa ajuda.
Voz da comunidade
"En un Sol Amarillo, Memórias de un Temblor" (Em um Sol Amarelo, Memórias de um Terremoto) é uma construção poética inspirada nesse acontecimento. É obra relevante por sua temática. Ao dar voz à comunidade, amplia a compreensão sobre a crise política atual, uma vez que nos mostra um acúmulo de indignação que sem dúvida cria barreiras ao diálogo entre poder público e população. Mas Sol Amarelo, remissão à poeira que tudo cobria na manhã seguinte à tragédia, é sobretudo bom teatro.
Transcende ao fato. Fala de seres humanos em sua miséria e sua grandeza, na interpretação de quatro bons atores, em cenas bem construídas com recursos simples, como molduras de janelas e portas que se movem por todo o palco, penduradas por fios.
No primeiro ato, compartilhamos a tragédia do terremoto, as perdas, mas também a solidariedade entre vizinhos. No segundo os terríveis efeitos da corrupção em todos os níveis. Se engenheiros e autoridades chegam a desviar milhões para suas contas bancárias particulares, a população sofre mais ainda com o pequeno poder. Por exemplo, soldados deslocados para proteger a população violam meninas e mulheres. Não se trata de mera especulação. O grupo põe à venda, ao fim do espetáculo, uma publicação com o texto da peça e também com a relação de todos os processos judiciais nesse caso, com nomes e cargos dos envolvidos, alguns já condenados.
Com poucos recursos, o grupo cria imagens eloqüentes, por exemplo, o desenho de uma menina feito com areia – desses infantis, feitos com pouco traços – sobre o tampo de uma mesa.
A figura se desfaz lentamente, como que soprada por um vento, enquanto o pai chora essa perda. "A dor da gente não sai no jornal", canta Chico Buarque no verso de uma de suas canções. A contundência desse espetáculo reside nesse olhar agudo de que só a arte é capaz. Mas ele não se estende às autoridades e à imprensa, propositalmente tratados de forma caricatural, personagens de comédia pastelão, o que contribui para que o espetáculo escape do panfletário. Nenhum nome de corrupto aparece no palco. Lugar de denúncia é nos tribunais. O Teatro de Los Andes aposta na força transformadora da arte sobre o imaginário.