Todo serviço público, mantido com recursos dos contribuintes, reveste-se de caráter essencial. Não fosse assim, inexistiriam razões para o Estado organizá-lo, preencher os cargos e dotá-lo dos meios destinados à realização dos objetivos da instituição. Serviço público não é atividade econômica com finalidades lucrativas, mas instrumento por meio do qual o Estado busca atingir as finalidades a que se propõe, garantindo à população os serviços a que tem direito. Os ocupantes de cargos efetivos e comissionados não são empregados, mas servidores da comunidade, sujeitos a estatuto próprio, pagos com verbas definidas no orçamento anual.
Espelhando sua vocação liberal, diz a Constituição de 1988, no art. 37, inciso VI, que “é garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical”. O mesmo artigo, no inciso VII, determina: “o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”. Esta redação foi dada pela emenda n.º 19, de 1998, ao substituir a exigência anterior de “lei complementar” por “lei específica”, modalidade desconhecida pelo art. 59 da Constituição, que trata do Processo Legislativo.
Por lei complementar, cuja aprovação exigiria maioria absoluta (Constituição, art. 69), ou específica, o direito de greve do servidor público civil continua carente de regulamentação. Desse tema cuidou o Poder Executivo tão só no decreto n.º 1.480, de 3 de maio de 1995, que “dispõe sobre os procedimentos a serem adotados em casos de paralisação dos serviços públicos federais, enquanto não regulado o disposto no art. 37, inciso VII, da Constituição”.
Na ausência de regulamentação legal, o servidor público está autorizado a deflagrar movimento grevista? A essa pergunta segue-se obrigatoriamente outra: se está, em que termos e dentro de que limites?
A greve é fato social, com histórica aversão à ordem legal. Como escreveu Helene Sinay, “o direito reage ao fenômeno, mas não o domina”. Os movimentos grevistas podem ser políticos e reivindicatórios. Políticos são aqueles que nada têm a ver com contratos de trabalho, dando-se como exemplos as greves dos aluguéis, dos impostos, da fome (Jean-René Treanton, Tratado de Sociologia do Trabalho, Ed. Cultrix Ltda., SP, 1973, pág. 229). Greve profissional, ou trabalhista, é a promovida com o objetivo de exigir do empregador o cumprimento da lei, de cláusula ou condição constante de norma coletiva, para obrigá-lo a atender reivindicação salarial ou assegurar melhores condições de trabalho.
Em nosso País malograram todas as tentativas de regulamentação do direito de greve. Do decreto-lei n.º 9.070, de 1946, à lei n.º 7.783, de 1989, passando pela lei n.º 4.330, de 1964, ou pelo decreto-lei n.º 1.632, de 1978, legislação alguma conseguiu ser rigorosamente obedecida, mesmo ao tempo do regime autoritário.
No que concerne à administração pública, a Constituição de 1988 permite que os servidores se organizem em sindicatos e acena com a possibilidade da greve. O direito de greve previsto pelo inciso VII do art. 37 continua, todavia, em estado latente, aguardando, há quinze anos, a prometida regulamentação definidora dos termos e limites balizadores do seu exercício. Da forma como o dispositivo foi redigido, será permitido ao Congresso Nacional regulamentá-lo excluindo atividades que considerar vitais e inadiáveis à comunidade e ao País, como se decidiu em relação aos militares, proibidos pela Constituição da República de se sindicalizarem e fazerem greve (art. 142, º 3º, inciso IV).
A responsabilidade pela falta de regulamentação debita-se ao presidente da República porque, segundo o disposto pelo art. 61, º 1.º, inciso b, da Constituição, é de exclusiva competência sua projeto de lei dispondo sobre servidores públicos da União e seu regime jurídico.
A ausência da lei causa prejuízos irreparáveis à população, à União, aos estados, Distrito Federal, municípios e aos servidores, repetidamente envolvidos em prolongadas paralisações coletivas, nunca se sabendo a quem recorrer para arbitrar o conflito.
O presidente Fernando Henrique tentou uma solução, mas exclusivamente pelo lado do Estado, baixando o mencionado decreto n.º 1.480, de 1995, que, como era de se esperar, jamais foi obedecido.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva jurou obedecer a Constituição da República e fazê-la cumprir. Não deve, portanto, ignorar o encargo de enviar ao Congresso Nacional projeto de lei regulamentando o inciso VII do art. 37, em benefício de todas as partes envolvidas com o serviço público, mas, sobretudo, em favor do povo, o grande prejudicado pelas greves em serviços públicos.
Almir Pazzianotto Pinto é ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, aposentado.