Alexandre Torres Vedana
A atual legislação brasileira garante a toda pessoa pobre, o direito ao registro civil de seu nascimento e ao assento de seu óbito de forma gratuita, bem como a expedição da primeira certidão relativa a tais eventos.
Trata-se de um direito fundamental ligado ao exercício mínimo da cidadania em seus aspectos cível, político e social. Dele deriva o reconhecimento formal por parte do Estado acerca da existência do ser humano e do término de sua vida.
Se o nascimento com vida confere a personalidade jurídica e a morte a extingue, é o registro civil que autentica esses acontecimentos. Daí porque o Estado deve garanti-la a todo ser humano, permitindo assim que a cidadania possa ser exercida de fato e de direito.
Paralelamente, nossas leis, notadamente a Constituição Federal, prevêem que os cartórios extrajudiciais, responsáveis pelo registro civil de óbito e de nascimento e também pela expedição de suas respectivas certidões, desenvolvem atividades em caráter privado por delegação do Poder Público, tendo à sua frente, como titular, uma pessoa física que para tanto recebe dita delegação depois de aprovada em concurso público.
A atividade dos assim chamados “cartorários” é cercada de particularidades e marcada pela exceção. Em que pese prestarem um serviço público delegado e por ele serem remunerados mediante pagamento de um tributo (taxa), por outro lado a legislação dispõe que a atividade dos “cartorários” tem caráter privado, que o vínculo que se forma com seus colaboradores é de natureza empregatícia regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho, e também que o gerenciamento administrativo e financeiro da serventia (cartório) é de sua exclusiva responsabilidade, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal.
Observados os contornos econômicos dessa atividade e postos de lado prejulgamentos, tão recorrentes quando o tema diz respeito a “cartório”, a questão ora posta passa necessariamente pelos princípios da ordem econômica, dentre os quais o da valorização do trabalho humano e o propósito de lucro.
O particular que se submete a um concurso para trabalhar como delegatário de um serviço público, no caso o “cartorário”, assim o faz tendo em consideração que será remunerado pelos serviços que prestar.
Não obstante, a previsão de gratuidade pura e simples dos registros e certidões de nascimento e de óbito choca-se com o direito à legítima remuneração dos “cartorários”.
Com efeito, a obrigação legal de prestar serviço de maneira gratuita, imposta a quem desenvolva atividade em caráter privado, pode ser equiparada a fórmulas elípticas de “trabalho forçado” e de “requisição administrativa”, vedadas constitucionalmente pelo art. 5.º, XLVII, “c”, e pelos artigos 5.º, XXV, e 22, III.
Poder-se-ia argumentar que o “cartorário” sabe de antemão que, ao ingressar na atividade, haverá de prestar “um pouco de serviço” sem contraprestação, mas se ainda assim ingressa é porque concordou com a “rentabilidade da atividade”.
Contudo, há que se ter em mente outras particularidades dessa atividade. Dentre tantas, em primeiro lugar, a consideração de que não existe fórmula para se avaliar a rentabilidade de um cartório antes de se ingressar em sua titularidade.
Também há que se considerar a existência de “cartorários” cuja delegação antecede à previsão legal de gratuidade daquelas certidões, de modo que foram, por assim dizer, “surpreendidos” com o advento da lei e correlata perda de receita.
Sem exaurir os argumentos, tem-se em terceiro lugar que os “cartorários” não dispõem de meios para recompor receita perdida, considerando que a alteração do valor de seus serviços depende sempre de alteração legislativa.
São freqüentes os exemplos de cartórios especializados em registro civil de pessoas naturais, que se tornaram deficitários em decorrência da gratuidade dos atos em questão.
Isto, todavia, a ninguém interessa. Não interessa ao Estado e nem aos particulares a falência dos serviços públicos e o comprometimento da eficiência de um serviço que, malgrado a antipatia de alguns, vem sendo prestado de maneira mais satisfatória do que seria pela mão direta do Estado, consoante a experiência revela.
Como resolver? De um lado a cidadania, o direito fundamental exercitável contra o Estado, relativo ao reconhecimento formal da personalidade jurídica e sua extinção, e de outro o direito à justa remuneração dos “cartorários”?
Pensamos que a questão não se deva resolver contra nenhuma das partes. Ambos os interesses são legítimos e tanto um quanto o outro podem ser aniquilados por completo sem a necessária equalização.
Pensamos que a legislação, ao prever a gratuidade dos registros de nascimento e de óbito e respectivas certidões ao mesmo tempo em que confere caráter privado aos serviços “cartorários”, deve ser entendida de modo a que os respetivos ônus financeiros sejam suportados pelo próprio Estado, jamais por um particular só porque delegatário de um serviço público que envolve direito fundamental.
Se a lei garante a gratuidade, não obstante ela ter um custo que recai sobre um particular, quem deve arcar com esse custo é o Estado porque se trata de um direito fundamental do cidadão garantido pelo Estado e contra ele exercitável.
Com efeito, na medida em que o Estado exige que particular suporte os custos da gratuidade prevista, está ele desvencilhando-se de tarefa que lhe é cometida pela própria Constituição Federal.
A tais argumentos somem-se que as ações governamentais na área de assistência social devem ser realizadas com recursos do orçamento da seguridade social.
Coluna sob responsabilidade dos membros do grupode pesquisa do mestrado em Direito do Unicuritiba: Liberdade de Iniciativa, Dignidade da Pessoa Humana e Proteção ao Meio Ambiente Empresarial: inclusão, sustentabilidade, função social e efetividade, liderado pelo advogado e professor doutor Carlyle Popp e subliderado pela advogada e professora M.Sc. Ana Cecília Parodi. grupodepesquisa.mestrado@ymail.com. Alexandre Torres Vedana é advogado e mestrando em Direito pela Unicuritiba.