Gramática da mudança: morfologia & sintaxe

Vivemos um tempo rico, multifacetado, pluriforme, protéico, em que a sociedade deseja, pede, aspira, reclama, e até mesmo exige, com veemência, mudanças. Agora mesmo nós temos alguém na presidência da república que se elegeu sobretudo pelo fato de ter sido quem mais prometeu mudar.

Mas o que vem a ser precisamente a mudança? Em que consiste ela? Qual a morfologia e a sintaxe que estruturam e definem aquilo que poderia ser chamado de gramática mudancista?

É uma lei universal, planetária, cósmica, a da mudança. Tudo muda. Lavoisier estava certo, certíssimo, ao equacionar a sua famosa Lei: “Na natureza, nada se ganha e nada se perde – tudo se transforma”. Quer dizer: tudo muda. E isso não acontece apenas no campo exclusivo das ciências físico-químicas. A lei é muito mais abrangente e mais ampla do que poderia supor o cientista francês.

Com efeito, o homem, o universo, a vida – as sementes e as florestas, as células e os organismos, os micróbios e as galáxias -, tudo vive permanentemente sob o signo régio e implacável da mudança. Mudam os seres vivos e as coisas inanimadas, ainda que em ritmos diferentes. Mudam as nações e os continentes. Mudam as emoções humanas e a moda feminina, a cotação das ações na bolsa e o valor da moeda, as religiões e as filosofias. E assim por diante. “Ad infinitum.” E “ad nauseam”.

A sutil intuição poética de Camões soube captar, num dos seus sonetos admiráveis, a mutabilidade essencial de todas as coisas:

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

muda-se o ser, muda-se a confiança.

Todo mundo é composto de mudança,

tomando sempre novas qualidades”.

A verdade é que, apesar da vontade humana, e muitas vezes à sua revelia, as transformações de toda ordem acontecem quando menos se espera. Em todos os terrenos. Em todas as latitudes, dos pólos ao equador. Na ciência e na arte, na economia e nas finanças, na política e na administração. Ao longo dos séculos, apenas uma coisa tem permanecido imutável: a essência última, a inevitabilidade da própria mudança.

Sim, as mutações, grandes ou pequenas, jamais deixam de se processar, com algo de ritualístico, ou litúrgico, na sua mecânica visível. Para melhor? Para pior? Isso pouco importa para a liturgia mudancista. Afinal, o ato de mudar prescinde de considerações de natureza axiológica (que dizem respeito aos valores ou teleológica (que se referem aos fins). Muitas vezes, embora isso possa parecer paradoxal, é preciso que as coisas mudem para que continuem exatamente como estão. Daí o conhecido aforismo francês, não sei se inventado por Molière, Rabelais, Voltaire ou Beaumarchais: “Plus ça change, plus c’est la même chose”.

Não duvidemos nem tenhamos ilusões: as mudanças sempre chegam. Tarde ou cedo. Inexoráveis como a aurora que se segue no império autocrático da noite. Mudança é sinônimo de movimento. E movimento é sinal de vida. Por isso, em Les pensées, o sempre lúcido e penetrante Pascal ensina: “A natureza humana reside ao movimento. O repouso completo é a morte”. E Heráclito, cinco séculos antes de Cristo, dizia com precisão admirável: “Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio”. De fato: a cada segundo que se escoa, as águas fluviais murmuram, correm, cantam, passam, avançam, e é sempre um rio novo que se alonga rumo a esse estuário amplo que é o mar.

No plano puramente humano, mudam as coisas à nossa volta e mudamos nós próprios, interior e exteriormente. A própria mudança, ela mesma, muda – e nos transforma. Nós não somos sujeitos do processo. Somos antes seus cúmplices – e as suas vítimas.

O clássico grito de Galileu Galillei – “eppur si muove” – não vale apenas para o movimento da terra em torno do sol. Vale para tudo. Do mesmo modo, equivocava-se o excelso Dante quando, tendo na tela da mente a figura peregrina da doce Beatriz, cantava na sua lira “l’amore qui muove il sole e altre stelle”. Onde se lê amor, ele próprio vítima das mais sutis ou das mais profundas transformações, leia-se – mudança.

A conhecida e melancólica indagação de Machado de Assis – “mudaria o Natal ou mudei eu?” – era desnecessária. Supérflua. Na verdade, ambos tinham mudado: a festa natalina e o criador da mutabilíssima Capitu.

Parafraseando o criador dos heterônimos, seria o caso de dizer: mudar é preciso. E as mudanças são necessárias para que o homem, o universo e a vida continuem sendo aquilo que sempre foram: o palco ciclópico em que a mudança, talvez um dos pseudônimos do Destino, desempenha quotidianamente, perpetuamente, a sua tragicomédia portentosa. Cujo autor talvez seja o próprio Deus, o Eterno Imóvel que tudo muda.

João Manuel Simões

, autor de 40 livros (de poesia, crítica, ensaio, contos, crônicas e pensamentos). Membro da APL, do CLP, do IHGP, da ACCur, do CEB e da AB de Lit. (Rio).

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